Produção de alimentos

O que estamos consumindo?
sexta-feira, 07 de fevereiro de 2025
por Jornal A Voz da Serra
Um ato tão cotidiano como comer uma salada pode ser menos saudável do que pensamos. Após décadas de agricultura industrial, todos sabem que os alimentos, em maior ou menor grau, podem estar contaminados com pesticidas. E também sabem sobre o impacto ambiental que resulta do consumo de alimentos que vêm de longe, de outros continentes.

As pessoas preferem não saber o que tem no alface, tomate ou morango, porque, se soubessem, não comeriam
O sociólogo Rafael Navarro de Castro, formado em Extensão e Desenvolvimento Rural, sabe o quanto é difícil combater esse problema. Por isso, defende que pelo menos deveríamos ter avisos claros informando de onde vêm os alimentos que compramos e quais pesticidas contêm, para que possamos saber o que estamos colocando na boca e, assim, cada um decida o que fazer com essa informação. Para ele, o cultivo sob o plástico das estufas é a metáfora perfeita deste mundo moderno.

(Foto: Freepik)

“A Terra não é coberta por um plástico, mas tem gases que produzem o mesmo efeito: conservar o calor”. Daí o título de seu segundo livro, “Planeta Invernadero” (“Planeta Estufa”, em tradução livre, ainda sem lançamento no Brasil), onde o autor leva o leitor a uma jornada ao longo de 2019, pelo Poniente, região costeira da Espanha marcada pelas estufas que criam este peculiar "mar de plásticos".

No livro de ficção, por meio da protagonista, Sara, uma engenheira agrônoma madrilenha, Navarro mostra o impacto da indústria agroquímica no meio ambiente e na saúde humana, assim como a migração e a exploração laboral no setor agrícola.

Ele, como sua protagonista, também decidiu mudar de vida, há 24 anos, quando partiu de Madri para Monachil, uma cidade ao pé da Serra Nevada, no sul da Espanha. Em mais de duas décadas, ele viu de perto o impacto das mudanças climáticas: castanheiros milenares morrendo por falta de água.

A BBC News Mundo conversou com o escritor durante o Hay Festival de Cartagena 2025 (Colômbia), que celebrou seus 20 anos em janeiro.

BBC News: Em seu romance “Planeta Invernadero”, você faz um retrato da sociedade em que vivemos e seus problemas, desde os ambientais até os sociais. Qual foi a sua inspiração?

Rafael Navarro: Teríamos que voltar ao romance anterior. Meu primeiro livro se chamava “A Terra Desnuda” sobre a vida dos camponeses que conheci na Serra, em 2000, quando cheguei lá. Conta mais ou menos a história dos meus vizinhos. É uma homenagem a esses homens e mulheres e a essa forma de vida, que estava desaparecendo diante dos meus olhos. Era um elogio à vida que essas famílias levaram, que eram autossuficientes e respeitosas com o meio ambiente. Para o próximo livro, pensei no que viria depois dessa agricultura tradicional — veio a agricultura intensiva industrial. Comecei a pesquisar e pensei: qual é a expressão mais extrema da agricultura intensiva? A estufa. Existem várias regiões na Andaluzia que estão completamente cobertas por plástico. Estamos falando de cerca de 60 mil hectares cobertos de plástico. Um mundo absolutamente impressionante.

Você foca sua história em um lugar onde o que não está coberto de plástico está coberto de concreto, onde o verde desapareceu, apesar de ser o celeiro da Europa. Como chegamos a isso?

Pelo capitalismo e pelo produtivismo. Na Espanha e na Europa, o processo foi o abandono das zonas rurais, porque eram consideradas improdutivas. As pessoas tiveram que se mudar para as cidades para trabalhar. Mas houve regiões que se desenvolveram tecnologicamente porque tinham aquíferos subterrâneos e boas condições meteorológicas. Esses territórios não se esvaziaram porque encontraram uma maneira de rentabilizar suas colheitas. E a solução foi o uso de estufas.

Com as estufas, eles conseguem produzir durante o ano todo. Mas tudo isso tem um custo ambiental gigantesco, que basicamente é a poluição do solo e da água, a exploração excessiva dos aquíferos e uma contribuição impressionante para a mudança climática, porque tudo isso é feito com base em energia e produtos químicos. Esses lugares cresceram e continuam crescendo com um problema duplo: primeiro, a exploração laboral, e depois, a destruição ambiental. 

No livro, você chama atenção para cereais transgênicos, peixe cheio de microplásticos, alimentos insossos como os tomates. O que fazer para o consumidor ter consciência do que está comendo?

(Foto: Freepik)

Não é só que os tomates não tenham mais gosto, é que estão contaminados e contêm produtos químicos que nos fazem mal, e isso, acredito, todo mundo sabe. A questão é: se sabemos que estão contaminados, por que continuamos comprando e comendo? 

Do ponto de vista coletivo, poderiam ser feitas mil coisas simples, como comer alimentos de época. Ou seja, comer abacates na estação em que são produzidos na Espanha, e não quando vêm do Peru. Só isso já seria um avanço para a civilização e não exige um grande esforço econômico. Mas, as pessoas não mudam porque estão em um estado de inércia, não se interessam pelo assunto.

Nesse contexto, a protagonista se faz perguntas como: “Quantos pesticidas contém esse prato tão saudável como uma salada?”

Minha editora me diz para não falar muito sobre pesticidas, porque as pessoas preferem não saber o que contém o alface, o tomate ou o morango, porque, sabendo, não comeriam. Mas eu reivindico o direito de saber, de ser informado. Sabemos que os pesticidas são cancerígenos, que afetam os sistemas hormonal, reprodutivo; que há muitos problemas como o hipotireoidismo; que alguns cânceres estão relacionados com a quantidade de pesticidas. Até a água da torneira e a cerveja têm pesticidas. Mas o consumidor não reage, e as instituições, menos ainda.

Em 2024, a União Europeia aprovou uma moratória de dez anos a mais para o glifosato. É o pesticida mais vendido do mundo, e também sabemos que é cancerígeno. Nos Estados Unidos, há ações que condenaram a Monsanto a pagar a agricultores que contraíram câncer depois de usá-lo. Estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, será proibido. Mas, enquanto isso, continuamos ingerindo isso em praticamente todos os alimentos.

Qual futuro nos espera?

Temos que tentar algo, pode funcionar ou não, mas se continuarmos assim, teremos sérios e piores problemas. Estive nas estufas de Almería, conversando com agricultores, empresários, imigrantes, e lá ninguém tem dúvida. Sabem que em 10, 20, 30 ou 40 anos não vai crescer mais nada lá.

O solo está morto devido à química, os aquíferos estão contaminados, e como o nível da água diminui, se infiltra água do mar, e também ficam salinizados. Nesse caminho, o desastre é garantido. Temos que tentar algo, parar com as estufas. Toda vez que vou a Almería, vejo novas estufas por toda parte. Mas como, se não tem água!?

No seu livro, você cita Rachel Carson, que publicou “Primavera Silenciosa”, em 1962, e a ativista alemã Petra Kelly, uma das fundadoras do Partido Verde alemão, em 1980. Ambas foram perseguidas. Como lutar contra um sistema tão forte como o que move a indústria alimentícia?

Quando comecei a pesquisar sobre a agricultura industrial, me lembrei delas, que eu havia lido 30 anos atrás. Depois continuei pesquisando e vi que todas as vozes sérias contra a agricultura industrial eram de mulheres. E decidi que a protagonista seria uma engenheira que trabalha nas estufas.

Percebi que todas foram desqualificadas, ameaçadas, agredidas. Então, isso aconteceria também com a minha personagem. Ela faz parte do sistema, mas vai criticá-lo, e como consequência, será insultada e perseguida. Eu, igualmente, recebi insultos e denúncias, a luta dos ativistas será sempre questionada. Lembre Greta Thunberg, acho que ela ainda vive meio escondida em algum lugar da Suécia.

Com Sara, conhecemos o que acontece sob o mar de plástico das estufas, incluindo a vida dos migrantes sem documentos que sofrem exploração laboral que beira a escravidão.

Essa é a contradição que governa o universo. Todos sabemos disso, mas não é só o tomate, é o meu celular e o que você tem aí. Esses produtos são feitos à base de exploração também de crianças, em minas africanas, em condições de vida inimagináveis. E ninguém pode dizer que não sabia.

O que tento é dar rosto a essas pessoas. Sem o abuso e a exploração de todos esses imigrantes, essas indústrias não durariam nem uma semana. Você tira os imigrantes e elas fecharão as portas no dia seguinte. Dei visibilidade a essas questões com a pequena esperança de que, talvez, alguém diga que isso não pode mais ser aceito.

Você acha que tragédias como a de Valência* ajuda a aumentar a conscientização sobre o clima?

Eu acho que um dos problemas do século 21 é a falta de memória. Ainda existem políticos que negam a mudança climática, e continuam construindo em zonas inundáveis. Voltamos à questão anterior: não queremos saber, não queremos abrir mão de nada, só queremos continuar tendo, explorando e aproveitando tudo.

*Mais de 200 pessoas morreram e dezenas continuavam desaparecidas nas graves inundações que afetaram a região de Valência, no leste de Espanha, em outubro de 2024. Em poucas horas, caiu o equivalente a um ano de chuva em algumas áreas, provocando grandes enxurradas que devastaram cidades inteiras, deixando milhares de pessoas ilhadas.

(Texto editado. Leia entrevista completa em www.bbc.com Por Almudena de Cabo

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