A primeira vez que ele notou algo estranho acontecendo foi quando era criança, na escola. A típica escola particular brasileira onde a maioria é branca. Seus colegas chamavam a cor da pele de tinta bege rosada. Para ele, porém, a caneta cor de carne era outra. “Eu pegava o lápis amarelo queimado, uma espécie de mostarda, e colocava na parte interna do antebraço para mostrar do que eu estava falando”, diz Gleyson Borges. Ao completar 31 anos você se define como negro, mas nem sempre foi assim.
Este designer gráfico que assina sua arte urbana como “A coisa ficou preta” chama a atenção para o fato de ele mesmo ter escolhido, justamente, o ponto onde a pele fica mais clara. “Eu queria chegar o mais próximo possível do padrão.”
Assim como centenas de milhares, milhões de brasileiros, Borges descobriu-se negro através de um longo processo que é ao mesmo tempo pessoal e coletivo. Uma transformação social que se acelerou à medida que foi demolido o mito de que o Brasil é, depois da escravidão, um paraíso de harmonia racial sem discriminação.
“Sempre fui negro, mas saber disso é algo que só aconteceu na vida adulta”, explica o artista em entrevista por videochamada de sua casa, em Maceió (Alagoas).
Do ativismo negro aos estudos afro-brasileiros
Os dados do censo 2022 do IBGE confirmaram, no final de dezembro, uma mudança relevante que provavelmente moldará a sociedade brasileira nas próximas décadas. Pela primeira vez em século e meio, aqueles que se definem como mestiços (45%, 92 milhões de pessoas) ultrapassaram os brancos (43%, 88 milhões) como o maior grupo racial.
Representa uma surpresa que culmina uma profunda transformação na forma como os brasileiros se definem em termos étnico-raciais. Aqui cada um escolhe entre as caixas oficiais: mestiço (em português, pardo), branco, preto (preto), indígena e amarelo (de ascendência asiática).
A antropóloga Lilia Schwarcz, de 66 anos, que se define como branca, é uma das grandes historiadoras brasileiras e estuda a questão racial há décadas. “A verdade é que os mestiços sempre foram maioria. Acredito que a atual classificação revela políticas presunçosas de uma sociedade que há muito está sob a influência de políticas de branqueamento. Ela [a sociedade] se definia como mais branca e agora se define como mestiça”, explica.
Durante décadas, quem estava no limbo marcou o branco, historicamente associado ao belo, ao positivo, em oposição a tudo de negativo que ainda está associado ao negro, das listas negras à difamação. No registro, eles tendiam a aliviar o registro do bebê.
A especialista atribui esta mudança na percepção social à luta do ativismo negro, às políticas de afirmação positiva , às cotas, aos estudos afro-brasileiros… “Tudo isso gerou um entendimento diferente por parte da população”, diz Schwarcz. Ela enfatiza que “as autoridades terão que reagir e se organizar a partir desta maioria mestiça em termos de representação sanitária, social e até institucional”.
Sobre cotas e pais indignados
A mudança acelerou nas últimas duas décadas graças a múltiplas políticas promovidas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). E o movimento negro tornou-se um tanto crucial quando o Estado adotou sua definição de negro como descendente de africanos, ou seja, inclui negros e mestiços, que no Brasil são maioria (56%), ao contrário dos Estados Unidos, onde eles estão em torno de 14%.
A implementação de cotas, há uma década, tocou num ponto sensível. Numerosas famílias brancas gritaram quando muitos mais estudantes pobres, mestiços e negros entraram na universidade. Eles sentiram que seus filhos estavam sendo discriminados. De propósito ou não, os pais indignados ignoraram a história. Que é irrefutável.
Cinco milhões de escravos trazidos da África ao longo de 350 anos lançaram as bases do que viria a ser o Brasil, nas plantações de cana-de-açúcar ou nas minas de ouro. Em nenhum outro país da América a escravidão foi tão duradoura. Abolido em 1888, as autoridades recrutaram 3,5 milhões de imigrantes europeus para substituir a força de trabalho e — sobretudo para eles — embranquecer a raça. O sonho dos eugenistas que queriam “aperfeiçoar” a espécie humana com as suas teorias racistas, para que não restasse nenhum vestígio de sangue africano, não se realizou.
Povo cordial?*
“Junto com a construção da ideia de que a mistura entre povos de diferentes origens sempre foi tranquila e natural por aqui, veio aquela sobre a índole pacífica e cordial do povo brasileiro. Seríamos uma combinação perfeita de gente de pele morena, sorriso nos lábios, muita simpatia, sempre vivendo em paz, mesmo em condições muito difíceis. Trata-se de uma bonita imagem para ser assumida internamente e vendida como mercadoria atraente ao exterior. Mas teria isso um fundo de verdade?
Se pesquisarmos a história do Brasil, a resposta é não. Uma longa trajetória de lutas e resistência de africanos e seus descendentes escravizados, assim como de guerras promovidas contra grupos indígenas que lutavam para permanecer nas suas terras ancestrais, mostra totalmente o contrário. O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados na história da humanidade: foram quase quatro séculos e mais de quatro milhões de africanos chegando aos portos brasileiros pelo comércio escravista. Somos o segundo país do mundo em população de origem africana, e o primeiro fora da própria África. E, hoje, mais da metade dos brasileiros se declara negro ou pardo.
Muitos de nós, entretanto, desconhecem o legado cultural dos povos africanos para o país. A história dos nossos antepassados até há bem pouco tempo não entrava nos livros didáticos e nas salas de aula brasileiras, onde predominava uma história europeia e “branca”. Isso vem mudando, embora devagar; ainda se vê muito preconceito e intolerância. Desde 2003, vigora uma lei que tornou obrigatório o ensino dessa parte da história. Conhecer a memória da África e dos negros no Brasil, assim como das culturas indígenas, significa mudar a perspectiva, e fazer com que os brasileiros possam se ver de outra maneira.
Retratos da diversidade
É preciso repensar a ideia de africano como um todo único. A África é um continente e, mesmo ao sul do deserto de Saara, onde habitam em sua maioria povos de pele escura, há, e desde há muito tempo, uma enorme variedade de línguas, culturas, religiões, costumes e aparências entre os diferentes grupos humanos. Esses grupos interagiram e disputaram espaços e o domínio sobre produtos e rotas de comércio. Alguns se misturaram e deram origem a outros povos, como ocorreu em outros continentes e regiões do mundo.
Jean Baptiste Debret (1768-1848), artista francês estudioso da natureza no Brasil, retratou os diferentes tipos de mulheres africanas que pôde observar na cidade do Rio de Janeiro. Nem na própria África seria possível encontrar tantos representantes de povos daquele continente como aqui. Debret produziu aquarelas que mostravam a diversidade de origens das mulheres que haviam sido trazidas e escravizadas no nosso país.
Com seus trajes e penteados, adornos e marcas faciais e de estética própria — como a prática de limar os dentes — essas mulheres afirmavam suas diferenças, também percebidas em suas tradições culturais e idiomas. Nada mais distante de suas vidas que a ideia de uma África no singular ou de características de comportamento e crença que unissem todas elas em um denominador comum. Essas africanas eram tão diferentes entre si como homens e mulheres europeus de países distintos.
Conhecer essas histórias africanas é uma maneira de desmascarar essa uniformidade inventada, e reconhecer o rico mapa da diversidade ‘negra’ que faz parte de nossas origens.
E de que vale saber essas diferenças todas e questionar uma imagem idealizada de país mestiço? Serve para nos aproximar de outras histórias que nos pertencem e nos darão a chance de chegar mais perto de entender que o tanto que nos diferencia nos aproxima, e nos faz mais humanos. Afinal, o racismo que se vê e percebe no Brasil é como uma mosca na sopa dos estudos sobre a nossa miscigenação.” (*Trecho de artigo de Monica Lima/UFRJ para cienciahoje.org.br)
(Fontes: elpais.com/america /// cienciahoje.org.br)
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