Eduardo Ramos, protagonista da peça “A Promessa”

Todo ator é um pouco professor e todo professor é um pouco ator
sexta-feira, 08 de dezembro de 2023
por Ana Borges (ana.borges@avozdaserra.com.br)
(Fotos: Acervo Pessoal)
(Fotos: Acervo Pessoal)
Professor de matemática há mais de 30 anos, coordenador da matéria na Secretaria Municipal de Educação, Eduardo Ramos, ator, é o protagonista da peça “A Promessa”, cuja temporada este ano atraiu grande público e merecidos elogios. 

Personificar o maestro foi o maior presente e o maior desafio que tive desde que comecei no teatro

Eduardo Ramos

“Apesar da óbvia distância entre sala de aula e palco, minha iniciação nas artes cênicas se deve justamente à minha carreira no magistério. No início dos anos 90, no saudoso Colégio Nossa Senhora das Graças, tomávamos nosso tradicional café, durante o recreio dos alunos, quando Jane Ayrão, então professora de artes do colégio, perguntou: ‘Que tal montarmos um grupo de teatro com os professores?’". 

Ele conta que inicialmente a proposta não o entusiasmou. Lembrou de sua rotina como professor, duvidou das chances de dar certo, mas, sem se tocar do como e por quê, no primeiro ensaio/encontro do grupo — mais tarde batizado de EncenaAção, lá estava ele.

“Não é que deu certo? Graças à capacidade visionária da Jane, ao longo de anos mágicos realizamos trabalhos que foram muito além de nossas expectativas, com releituras que iam de Fernando Pessoa a Cora Coralina”, lembra. 

Com o fim do projeto e ao assumir a direção do Teatro Amador do Colégio Anchieta (Taca) Jane propôs a Eduardo integrar o grupo. “Vivemos momentos inesquecíveis com aquela garotada talentosa e despojada, até que demandas da vida e da profissão me levaram a deixar o grupo”. 

Após décadas, “no momento mais improvável e menos viável de minha vida”, Jane Ayrão voltou a procurá-lo para integrar uma nova trupe. “Desta vez com uma proposta diferente, um misto de dramaturgia, música, dança e poesia. Comecei declamando Manoel Bandeira para celebrar a Semana de Arte Moderna. E quando achei que já tinha ido longe, veio o convite para dar vida a Samuel Antônio dos Santos, em “A Promessa”. Bom, aí chegamos a um outro ‘capítulo’ dessa jornada”, antecipa Eduardo, que nesta entrevista fala da carreira e de sua experiência com o novo personagem.

Antes de se decidir pela carreira nos anos 90, em algum momento cogitou ser ator?

Desde garoto, minha literatura foi o cinema. Fui privilegiado por fazer parte de uma geração que cresceu assistindo as transformações culturais que os anos 60 e 70 proporcionaram, uma época em que a imaginação e a criatividade explodiram. Eu tinha sim o sonho de fazer alguma coisa neste sentido, mas atrás das câmeras. Me considerava tímido demais pra subir num palco, viver outra pessoa na frente de todo mundo.

Você fez curso, teve aulas de interpretação ou apenas se entregou à emoção para interpretar? Como se tornou profissional?

Nunca fiz curso de teatro. Fui desenvolvendo técnicas enquanto atuava. Além das orientações da Jane Ayrão, apostava na minha intuição. Minhas melhores personificações foram construídas assim, com o que vinha de dentro, a partir dos sentimentos que os personagens provocam em mim. 

Você tem quase o mesmo tempo de teatro e de magistério?

Comecei no magistério muito novo. Me lembro inclusive de ser barrado na entrada da escola pelo porteiro me pedindo a carteirinha de estudante. Logo em seguida, três ou quatro anos depois, comecei a fazer teatro no próprio colégio. Creio que naquele tempo as coisas eram mais fáceis. Fica a impressão de que o relógio andava mais devagar e que tínhamos mais controle de nossas vidas.

Qual a diferença entre estar na sala de aula e no palco?

Na verdade, todo ator é um pouco professor e todo professor é um pouco ator (fazer um adolescente se interessar em aprender uma expressão algébrica exige uma atuação digna de uma obra shakespeariana). Enfim, cultura e educação são duas faces da mesma moeda e, infelizmente, numa sociedade com os valores tão distorcidos, as duas atividades estão sempre "nadando contra a maré". Me orgulho muito de exercer as duas.

O que sentiu quando pisou num palco pela primeira vez?

A ansiedade e a apreensão que tive na primeira vez que subi num palco não são muito diferentes das que tenho agora. Aliás, dizem que isto é muito bom. Se você não sente aquele “friozinho na barriga” antes de entrar em cena é porque alguma coisa não está bem. Não é lenda. Cada apresentação acontece de um jeito. A troca que fazemos com o público é uma química que não temos muito controle. Dependendo do público, do ambiente, da batida da asa de uma borboleta, o resultado pode acontecer das mais variadas formas possíveis

Qual a medida que dá ao talento e vocação para a arte de atuar?

Ter vocação é importante para qualquer atividade, mas não creio que seja o único quesito necessário. Essa história romantizada de que “a pessoa nasce sabendo” não funciona bem assim. Sempre vai existir alguma coisa que você pode melhorar. Ter a humildade de entender suas imperfeições e estar aberto para aprender são aspectos fundamentais para tudo na vida. No teatro, fico sempre muito atento aos que outros fazem, tanto na trupe quanto fora dela.

Destaca alguma produção? 

Cada espetáculo traz uma sensação diferente. Não vou dizer que são “como filhos” (pois sempre tem uma ou outra apresentação que guardamos com mais carinho), mas são todos muito especiais. Pra não fugir da pergunta, cito o Palhaço Pandareco que contava pras crianças a história de um circo que estava pra fechar porque ninguém ligava mais. O carinho da garotada foi algo que jamais esquecerei.

Como está sendo interpretar o maestro Samuel Antonio dos Santos? 

Personificar o maestro Samuel Antônio dos Santos foi o maior presente e o maior desafio que tive desde que comecei no teatro. No início da preparação da peça eu não tinha a dimensão do quanto contar esta história poderia significar para as pessoas. Mesmo sabendo do valor e da autenticidade do que estávamos propondo, tive minhas dúvidas de como as pessoas receberiam a narrativa que criamos. Nos debruçamos sobre um processo trabalhoso, mas também muito enriquecedor. 

Agradeço a ajuda que tive na construção desse personagem. Às orientações de nossa diretora, ao talentoso elenco, à professora Cristina Vale que deu o suporte cultural ao núcleo lusitano, à querida Tininha que foi essencial nos bastidores, ao figurinista Virgílio que nos transportou para o século XIX, à maravilhosa Banda Euterpe Friburguense que nos inspirou e deu forma à cena mais emocionante do espetáculo, e aos músicos e cantores que abriram caminho para tocar o coração da plateia. 

Creio que cumprimos a missão de contar este importante episódio de nossa história, para reverenciar as pessoas/heróis que nos deram a identidade que temos hoje. Que a saga de Samuel seja uma forma de resgate e inspiração para as futuras gerações.

Produção

Baseada na vida do maestro português Samuel Antônio dos Santos, “A Promessa” conta a história do oficial da Marinha portuguesa que, em viagem de navio para a Argentina, enfrentou uma tempestade que colocava em risco a vida de passageiros e tripulação. 

Homem de fé, o maestro ajoelhou-se no convés, rezou e prometeu: se sobrevivesse, na primeira cidade que lhe desse acolhida ergueria uma capela em louvor a Antônio, seu santo de devoção. Prometeu ainda viver somente dos rendimentos como músico, além de cuidar dos mais necessitados. 

Livre da tormenta, mas desviado da rota, o navio aportou na costa brasileira. Após vagar sem destino pelas ruas do Rio de Janeiro, rumou para a serra fluminense, apeou em Nova Friburgo, e se sentiu em casa.

Depois de estabelecido, passou a dar aulas de música no Colégio Freese, alguns anos depois criou a Sociedade Musical Beneficente Euterpe Friburguense, e construiu a Capela de Santo Antônio, na Praça do Suspiro. Como prometera.

Companhia

A Companhia de Arte Jane Ayrão é uma entidade sem fins lucrativos que tem como principal objetivo “a promoção da Arte-Educação a partir de pesquisa histórica e de princípios éticos que contemplem o exercício da criticidade consciente e o respeito à diversidade cultural”. 

Segundo a professora Jane, “A Promessa” foi o espetáculo mais bonito que já produziu. “É uma bela história que poucos friburguenses conhecem: a saga de um imigrante português que construiu a Capela Santo Antônio e criou a Banda Euterpe Friburguense, em 1863”. 

Entre elenco e equipe técnica, a peça conta com cerca de 50 profissionais. Recentemente, a Companhia de Arte Jane Ayrão recebeu convite para apresentação na Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, em 2024, em data ainda a ser confirmada.

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