É preciso coragem para ser o que se é

Entrevista com Caroline Alves Maia: “A questão da sexualidade ficava mais latente e problemática já que você se olha, não se reconhece, não se aceita, mas faz de tudo para ter a aprovação e aceitação de todos”
sábado, 06 de março de 2021
por Ana Borges (ana.borges@avozdaserra.com.br)
É preciso coragem para ser o que se é
Caroline Alves Maia, mulher trans, pedagoga, advogada, com pós-graduação em Investigação Forense e Perícia Criminal. No momento desempregada, decidiu se matricular em outra pós, de Direito Eleitoral, finalizar o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de uma pós em Direito Civil, e se preparar para concursos. 

“Aos outros, dou o direito de ser como são. A mim, dou o dever de ser cada dia melhor”

Chico Xavier

“Ao ter a coragem de se aceitar é preciso, antes de tudo, se amar. Para querer aceitação e a aprovação alheia — que muitas vezes implica abandonar pessoas, parentes, amigos, contratos — é preciso aceitar que você será, primeiro, abandonada, algumas vezes de forma abrupta outras de forma gradativa: por exemplo, algumas pessoas deixam de sair com você em público ou não aceitam uma solicitação em rede social (fingindo que não viu ou ignorando). Enfim, são inúmeras  as formas de uma pessoa mostrar o que ela é de fato.

“Assim sendo, independente de ser transexual, devemos buscar para nossa convivência,  pessoas que simplesmente gostam da gente como somos e não as que tentam nos ‘formatar’, para nos considerar adequadas a conviver com elas. Partindo desse ponto, como já disse, é preciso se aceitar, mas, principalmente, aceitar as condições alheias, ora impostas e vivenciadas, mas não de forma vitimada, mas sim como renascimento, entendendo que, como disse Chico Xavier, “aos outros, dou o direito de ser como são. A mim, dou o dever de ser cada dia melhor”.

Caroline é fruto de uma família desestruturada, com uma mãe batalhadora e dedicada, que nunca abandonou os filhos, um irmão e um pai que se perdeu no alcoolismo, sofreu transtornos mentais e passou pela Clínica Psiquiátrica Santa Lúcia. Não é preciso entrar em detalhes para falar das agressões e abusos praticados pelo pai contra a mãe, desde a gravidez, e filhos. Cansada daquela vida infeliz, um dia pegou as duas crianças e fugiu de casa. Sem ter para onde ir, ficou na rua mesmo. Não conseguia trabalho, não tinha com quem deixar os filhos, não podia levar para a escola porque o marido descobria, perseguia e, armado com faca, ameaçava mãe e as crianças. Passaram fome e frio. Entre uma ajuda aqui outra ali, ficavam um tempo na casa de um parente, depois de outro. Desespero.

Depois de um tempo, a mãe conseguiu algumas faxinas e então pode alugar uma casa e recomeçar a vida. Aí veio o segundo casamento da mãe, os filhos foram matriculados no Ciep Glauber Rocha, que oferecia ensino integral, com café, almoço e janta, uniforme com sapato e material escolar. A mãe podia trabalhar e as crianças ficavam seguras, fora das ruas. 

Até que o novo marido conheceu a cocaína, começou a beber após o trabalho, às vezes chegava em casa transtornado, e em uma dessas vezes jogou álcool na casa e ameaçou atear fogo. A família fugiu de novo, e após uns dias, quando retornaram para pegar alguns pertences, pouco restava. Ele havia destruído tudo, sobrando apenas algumas roupas, fotos e uns objetos. Resultado, voltaram à situação de rua e depois se instalaram num barraco, na favela. 

Transformações, novas descobertas

À medida que crescia, Caroline percebia que não se encaixava, não gostava das mesmas coisas que os meninos, era diferente, amiga só de meninas. “Eu ainda não entendia o que estava acontecendo, apesar de ser uma criança amadurecida para minha idade, e inteligente. Recebi alguns prêmios ao longo dos anos, como por exemplo, uma viagem para a Disney pelo projeto municipal ‘Aluno nota 10’. 

Conforme o tempo passava, a questão da sexualidade ficava mais latente e problemática já que você se olha, não se reconhece, não se aceita mas faz de tudo para ser aceito pelos outros, ter a aprovação e aceitação de pessoas que nem gostam de você ou se importam com quem você é de verdade. Mas esse aprendizado só vem com a maturidade. Fato é que é um transtorno mental imenso, haja vista que os primeiros problemas são dentro de casa mesmo. 

Eu já não tinha vínculo afetivo com meu pai há anos, pois em todas as tentativas de aproximação, brigávamos. Talvez porque ele já notava, não a transexualidade, mas a homossexualidade, sendo esse um importante ponto a se ressaltar, já que tal tema é bem novo, nos quesitos de debates sociais, direitos e garantias. Até poucos anos atrás, não havia sequer direito a respeito ou alteração de nome sem ação vexatória, que se dava judicialmente e ainda poderia ser negada, ou seja, além de toda a vivência e experiência ruim, ainda esperava-se que outra pessoa decidisse se você poderia ou não ser uma mulher ou um homem e trocar de nome.

Era uma tortura diária ter que esconder os desejos, as frustrações para não criar conflitos em casa. Então, me voltei para o que mais gostava de fazer: estudar! Olha como é a vida… em 2005, meu pai teve câncer na garganta, teve que operar, fez traqueostomia, perdeu a fala, e como naquela época não havia ninguém para ficar com ele no hospital, fui acompanhante dele por alguns dias. Mesmo assim, não restauramos nossos vínculos. 

No fim do ensino médio, apesar de disfarçar e tentar evitar os conflitos e problemas, já tinha certeza que não sentia qualquer atração por mulher, apesar de tentar, e que fazia com que minhas frustrações fossem constantes, bem como as crises de tristeza, depressão etc.” 

Os estudos, os percalços, a carreira

Devido às boas notas e de ter prestado o Enem, Caroline ganhou uma bolsa integral para Pedagogia, na Universidade Candido Mendes/Ucam, em 2007, pelo Prouni. Ao fazer a inscrição, marcou cursos e opções que ela não conhecia o suficiente para decidir. Ela lembra que chegou a optar por Direito, mas o curso era muito concorrido, e teve que escolher entre ficar na fila de espera para Direito ou já começar o curso de Pedagogia. Foi estudar para ser professora. 

Ela não tinha trabalho, a mãe não podia ajudar, aproveitava a carteirinha de estudante para jantar no Ienf. De lá ia para a faculdade e voltava a pé para casa. Não tinha celular, internet, nem dinheiro para xerox e livros. Para estudar, ela copiava dos livros que pegava na biblioteca ou de xerox dos amigos nos intervalos das aulas. Foi nessa época que o pai faleceu. 

“No hospital, ele havia pedido para me ver, mas, quando resolvi ir, cheguei tarde. Não pude me despedir dele. E isso foi algo que levei um bom tempo para me perdoar”. 

Ao mesmo tempo, a correria para fazer dois cursos mais a falta de dinheiro pesou e Caroline foi atrás de trabalho. Saiu do Ienf, tentou algumas atividades que não deram certo, e continuava indo e voltando a pé, de casa no Sítio São Luiz até a Ucam. Tinha uma colega de turma que morava no Cascatinha, então às vezes conseguia carona até o Cônego. 

“Em 2009 me formei em Pedagogia, mas continuava insatisfeita como pessoa e como profissional. Continuava com Direito na cabeça. Estava sem saber qual rumo tomar na vida, quando, em março de 2010, recebi um e-mail sobre o Fies: enfim, realizaria o sonho de ser advogada. Comecei a estudar na Estácio de Sá, havíamos retornado para a casa em Duas Pedras. 

No início de 2011, sofremos como todo o povo friburguense com a tragédia climática e ficamos desabrigados. Mas em fevereiro consegui emprego em uma escola particular e apesar de ganhar pouco já dava para pelo menos pagar as passagens de ônibus. Depois consegui um emprego no Sindicato do Comércio, onde fiquei por cinco anos. Aí, já dava até para ajudar em casa. 

Em 2013, recebi uma oferta de desconto para fazer pós-graduação na Estácio e consegui ingressar nesse curso: fazia a faculdade durante a semana e no sábado, a pós. Mas não consegui terminar a última matéria que seria o TCC para finalizar o curso. 

Finalmente, a identidade

Em 2017, Caroline saiu do Sindicato e foi trabalhar na prefeitura, onde passou por alguns setores, até ser convidada para realizar a parte jurídica do Centro de Referência Especializado de Assistência Social – Creas, onde conheceu a coordenadora, que faria a diferença na vida dela.

“Percebendo minhas frustrações e sinais depressivos, ela me escutou, soube do meu deslocamento, desconforto, da dificuldade de me encaixar nos ambientes, tanto social quanto profissional. Foi lá que me tornei Caroline, onde dei início ao processo de mudança de identidade. Em 2018, saiu um provimento novo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, nº 73), que regulamentava a alteração de nome direto em cartório, pautando-se na dignidade da pessoa humana.

Fiz a troca dos meus documentos, e nisso fui pioneira aqui em Friburgo, enfrentando todo tipo de transtornos e questões que me geraram consequências psicológicas negativas, inclusive diante da minha própria área de trabalho. Penso que dentro de Friburgo e algumas cidades vizinhas, desconheço outra mulher trans advogada e pedagoga. Tive que me submeter a alguns atos que considero vexatórios, mas não desisti.” 

Em 2020, Caroline foi convidada a assumir a Coordenação do Creas, que, segundo ela, foi de uma enorme responsabilidade e aprendizado. Ela acredita que foi a primeira vez que uma mulher trans assumiu, em Nova Friburgo, um cargo de Coordenação de um equipamento público de prestação de assistência à população. 

“Desempenhei meu papel com a maior dedicação possível, com uma equipe que não mediu esforços para prestar o melhor atendimento à população, por diversas vezes até mesmo fora do horário de trabalho. Fico muito feliz em ter participado dessa equipe, que recebeu elogios do Poder Judiciário pelo trabalho realizado. Mas, esse ano fui dispensada. Estou sem vínculo empregatício, e penso que essa situação passa por questões que esbarram no preconceito”.

Planos

No momento, Caroline tenta a reativação de uma comissão de direitos junto à 9ª subseção da OAB Friburgo. Ela conta que um grupo de mulheres enviou uma proposta para a sede local, uma vez que a própria entidade defende as bandeiras democráticas do estado de direito. E que em várias Seções e Subseções do Brasil, as comissões de diversidade sexual encontram-se ativas. 

“Penso que Nova Friburgo não pode ficar de fora. Precisamos implementar políticas públicas nesse sentido, promover debates, dar suporte e informar, cabendo lembrar ainda que nossa própria lei orgânica já contempla direitos e garantias a essa população. Sendo assim, precisamos avançar.

Ainda temos outro mecanismo de política pública — o Conselho de Direito — onde tenho buscado informações a respeito da ativação do Conselho Municipal de Direitos, voltado também para políticas públicas para o mesmo grupo. São muitas as dificuldades na vida de uma pessoa transexual, começando pela vivência com os familiares e amigos, depois pela sociedade como um todo. O preconceito sempre vem na frente, seja de forma direta/explícita ou indireta/implícita. A luta continua,“ encerrou Caroline. 

 

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