Conto de Natal

Uma crônica de Robério Canto
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020
por Jornal A Voz da Serra
Conto de Natal

O menino anunciava a mercadoria quando, sem querer, olhou para dentro.
Seus pés foram atrás dos olhos, enquanto sua voz gritava o refrão que o pai
lhe ensinara: "Três por mil! Três por mil! O mais barato do Brasil.  À medida
que o menino avançava, o grito ia se apagando, no fim era apenas um sopro.

Quase na véspera de Natal, o vendedor tinha dificuldade para mostrar o
brinquedo para a Mulher-Cheia-de-Embrulhos. Dava um pouco de corda,
soltava com a mão direita e, pulando para o alto, pegava o avião com a
esquerda, antes que ele disparasse por sobre a cabeça dos fregueses.

Espantosamente, a Mulher-Cheia-de-Embrulhos fez que não com o dedo,
como se tivesse achado pouca ou nenhuma graça. O vendedor foi dobrando a
maravilha voadora, até deixá-la desse tamaninho, e a colocou de novo dentro
da caixa. A caixa era um pouquinho menor do que a usada pelo menino para
carregar seus chocolates.

O menino tinha 9 anos. No começo, vendia um chocolate e comia outro.
Foi preciso o pai lhe dar muita pancada para que aprendesse. Agora, por mais
vontade que sentisse, nem olhava para a caixa. Só quando o Moço-de-Barba-
Comprida comprou três (por mil! o mais barato do Brasil!) e enfiou-os no bolso
da surrada camisa do menino. Era possível que o Moço-de-Barba-Comprida
tivesse adivinhado que o menino estava fazendo 9 anos naquele dia? Não
sabia de onde vinha tanto chocolate. O pai saía de noite, sem dinheiro nenhum,
e voltava de madrugada com várias caixas. Ao acordar, o menino já encontrava
a sua parte separada, descia o morro, serpenteava o dia inteiro pelas ruas do
centro, sempre gritando seu poderoso slogan: "três por mil! Três por mil! O
mais barato do Brasil!"

Na hora da fome, pedia aos passantes que lhe pagassem um salgadinho.
Quinhentos recusavam, um acabava se condoendo daquele menino tão
pequeno, naquela cidade tão grande. Nunca pensava em brinquedo, não se
lembrava de ter tido nenhum. Mas a mãe, inventadeira, fazia bolas de pano; de
chuchu espetado com palitos saiam bois, gigantes e carrinhos. Era só e era o
bastante. Até que o menino viu o aviãozinho. Se soubesse, nem tinha passado
por ali, dava a volta, virava uma esquina, todas as ruas são a mesma rua.
Roubar, então, Deus me livre! Nunca tinha passado por sua cabeça. Mas o
aviãozinho! Escapulia da mão do vendedor como um passarinho brincalhão. Se
deixassem, era capaz de sair porta afora e ir flutuando por cima do monstro de
mil cabeças que o povo aglomerado formava. Fugiria daquelas ruas sujas e
quentes, buscaria o mar, as nuvens, pousaria numa ilha onde o menino
brincaria como menino, se lhe dessem a oportunidade de ser menino.

Passou então a olhar a loja. Observou que o vendedor ia lá dentro apanhar
coisas, demorava. O avião pousado sobre a pilha de caixas de avião. Em
poucos dias decorou os labirintos da loja. Saberia andar de olhos fechados por
entre bolas, bonecas e espingardas. Pernas e mais pernas. Vendedores
agitados. E o Homem-Gordo-de-Óculos lá no fundo, vigiando tudo. Não, não
dava para vigiar tudo ao mesmo tempo.

No sábado, o movimento era demais. O pai já tinha dito: “Vê se hoje tu
vende tudo, que amanhã é Natal”. O menino esvaziou a caixa, cortou o fundo
com cuidado e foi para a loja. Entrou oferecendo chocolates, o Homem-Gordo-
de-Óculos fez sinal para que saísse.

O menino foi saindo, perdeu-se no meio daquele povo todo, apoiou a caixa
na pilha de aviõezinhos, levantou a caixa com os dedos por baixo e foi embora.
De repente, dois rapazes vinham correndo atrás dele: Pega ladrão! Pega
ladrão! Chocolates voavam de seus bolsos, quatro ou cinco pessoas tentaram
agarrá-lo, ficou com o pescoço arranhado e sujo de sangue. Também apanhou
do pai, por causa dos chocolates perdidos. “Amanhã vou vender essa porcaria
de brinquedo, pra recuperar o prejuízo!”

Mas de madrugada, depois que Papai Noel já tinha passado pelas casas
das pessoas ricas, o menino escapuliu do barraco e foi brincar no alto do
morro.

Tem gente que viu e até hoje jura que o menino não estava sozinho. Outro
menino brincava com ele e os dois riram, pularam e correram atrás do
aviãozinho até o dia 25 de dezembro amanhecer completamente.

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