A garota e o ipê

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas

Não tem jeito. A própria Heloisa Pinheiro, que não envelhece nunca na canção de Vinícius e Tom, completou 81 primaveras, como se dizia antigamente, e mais os verões, invernos e outonos correspondentes. Conservadíssima, está tão feliz com a nova idade que comemorou duas vezes o aniversário: em julho e em agosto. Que o tempo, esse implacável inimigo do corpo humano, lhe permita assim permanecer por longos anos, ela, que permanecerá eternamente jovem, para sempre a Garota de Ipanema, a “coisa mais linda, mais cheia de graça”. O Pe. António Vieira disse que a beleza nada mais é do que uma caveira bem vestida. Mas algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas, e esse é o caso de Helô Pinheiro.

Teve razão o Poetinha quando a viu passar “num doce balanço a caminho do mar” e quando concluiu que a beleza é fundamental. Com certeza, e não só a beleza feminina, desde sempre e em todo lugar exaltada em prosa e verso. Mas também a que tantas vezes está ao nosso redor, sem que nela reparemos. Uma conhecida me disse que havia fotografado um ipê na minha rua. Eu já tinha reparado naquele amarelo exagerado, mas, ao retornar para casa, me detive um instante para contemplar o presente que a natureza colocara à disposição de meus olhos, de graça e sem que eu fizesse nada para merecer.

O sucesso de “Garota de Ipanema” se deve com certeza à qualidade da letra e da melodia, mas se deve também à sua inspiração original: a própria beleza. Em vozes que vão de Pery Ribeiro (primeiro a gravá-la) a Frank Sinatra, “Garota de Ipanema” chegou a ser a música mais executada ao redor no mundo, depois de “Yesterday”. Houve um tempo em que se dizia que ela nunca parava de tocar, porque, quando calava em algum lugar do planeta, já começava a se fazer ouvir em outro. Silenciava no Japão e no mesmo instante começava na Islândia. Em 1965 ganhou o Grammy, superando sucessos como “I want to hold your hand”, dos Beatles, e “Hello, Dolly”, com Louis Armstrong. Aliás, certa vez disseram a Tom Jobim que só os Beatles eram mais tocados do que ele, ao que o “maestro soberano”, como o chamou Chico Buarque, respondeu que “sim, mas eles eram quatro!”

Os dicionários ensinam que a beleza é a característica do que apresenta perfeição de formas; o ser ou a coisa que desperta sentimento de êxtase, admiração ou prazer através dos sentidos. Por isso mesmo ilumina os olhos e alegra o coração. A expressão “está cansando a minha beleza” não tem sentido, porque o belo nunca se cansa e nunca nos cansa. Ao contrário, é preciso que ele nos cerque, para que haja leveza num mundo com as guerras, as injustiças, as pequenas e grandes dores que podem tornar a nossa passagem pela existência uma coisa feia e pesada. Como na definição de Shakespeare/Macbeth: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”.

Da garota de Ipanema ao ipê da minha rua, a beleza existe e está aí, ao nosso redor, para nossa contemplação. Quem tem olhos de ver, que veja.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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