As mães ucranianas

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas

Lembro-me mais ou menos de uma frase do Padre António Vieira sobre a guerra. Também mais ou menos sei onde ela está e vou procurá-la. Ei-la: “A guerra é aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que não se padeça, ou não se tema; nem bem que seja próprio e seguro”.

Já no tempo dele era assim. Muito antes dele já era assim, terá sido sempre assim, desde o momento em que o homem primitivo, que mal havia levantado a cara do chão, sentiu-se capaz de segurar um pedaço de pau ou de atirar uma pedra e ferir outro homem. E hoje, milênios e milênios depois, primitivos continuamos, agora com armas mais destrutivas do que quanto pau e pedra possam existir no universo. Armas capazes de ferir não um, mas milhares, milhões; armas inteligentes, certeiras, fatais. E, se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas. Talvez nem se possa falar delas no plural, pois bastará uma para que tudo vire pó, fumaça, nada. E para que finalmente a vida se cale no planeta Terra.

A cada minuto a guerra nos atinge. Não há como ignorá-la, ainda que tentemos fechar os olhos, tapar os ouvidos, calar a consciência. Bombas explodem, prédios desabam, pessoas correm, tentando superar estradas, cruzar fronteiras. Vão carregando sacos ─ roupas, remédios, documentos ─ e carregando-se uns aos outros. O andar trôpego e a cara sofrida com que avançam penetram em nosso coração. Não o coração dos românticos, aquele músculo incessante que trazemos no peito e que na verdade nunca se alegra ou se entristece. Mas aquele coração que é a nossa espiritualidade, nosso sentimento do mundo, nossa própria humanidade.  O coração que nos distingue das coisas brutas como a pedra, e mesmo dos outros animais que compartilham este mundo conosco ─ serpentes, jumentos, passarinhos.

E todos nós temos rezado, cada um a seu jeito, pois há muitas maneiras de rezar e as melhores independem das palavras. Sim, rezamos por todos os que sofrem e morrem em meio ao barulho, a fumaça e a escuridão, perdidos entre os gritos e gemidos que ressoam naquele pedaço do mundo tão distante e tão ao alcance do nosso coração. Rezamos por russos e ucranianos, que o sofrimento e a dor não conhecem nacionalidade. E se rezamos com maior fervor pelos ucranianos é porque eles estão sendo agredidos, porque são mais fracos, porque morrem mais. Sim, rezemos pelos ucranianos, e ainda mais pelas mulheres ucranianas que sofrem pelos maridos e pais que estão no fragor da batalha ─ ou talvez não mais, talvez já tenham abandonado a luta e estejam estirados no chão, sujos de terra e de sangue.

E mais do que por todas, rezamos pelas mães ucranianas, que ora se escondem, ora correm, ora se encolhem, e disfarçam suas fraquezas e seus medos, para fazer deles força e determinação. Lá vão elas, bolsas despencando do ombro esquerdo, a mão direita segurando uma criança, e mais outra que dorme no seu colo. Quem sofre mais do que essas mães? Nem mesmo os pequeninos, que esses ao menos têm um vulto que os afaga e conduz, ainda que aos trancos e barrancos. As mães ucranianas lutam, temem e tremem sozinhas ─ por si e por todos que elas amam.

Mas nessa calamidade composta de todas as calamidades, rezemos também pelas mães russas, muitas das quais têm se manifestado contra a guerra, apesar de reprimidas pelo governo. Pois de que vale para qualquer mãe ganhar uma guerra, conquistar um país e perder um filho?

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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