Caio e o Menino Maluquinho

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Uma das homenagens mais bonitas que recebi na vida veio de um dos meus afilhados e sobrinho. Filho de mãe solo. Sem heranças, nem berço de ouro. Exatamente como eu. Já nos seus quase vinte anos, na faculdade, cursando psicologia, disse-me: “Você me mostrou um caminho que poucos têm a oportunidade de trilhar: o do conhecimento. Com um livro presenteado na minha formatura de alfabetização, você me mostrou um novo horizonte de possibilidades raras para pessoas que vêm de baixo, como nós dois viemos. Tenho orgulho de compartilharmos das mesmas raízes”. 

Toda vez que lembro disso, as lágrimas me tomam por completo. Lágrimas de uma felicidade ímpar. Um brinquedo, uma roupa não me renderiam, dez, quinze anos depois, tamanho depoimento que me envaidece de pureza. O brinquedo quebraria. A roupa ficaria curta. Mas o livro fica na memória e o que vem depois dele é um universo. Mas acima do testemunho e da vaidade em mim semeada, o maior orgulho é ver o homem que aquela criança se tornou. 

O Menino Maluquinho foi o livro que lhe presenteei. Obrigado, Ziraldo. Depois desse exemplar, Caio não parou mais de ler. Lê de tudo. E, apesar das dificuldades, da casa apertada e da mãe que trabalhava quase que vinte e quatro horas por dia, sempre foi o melhor aluno, o melhor filho, o melhor neto. Caio é prova de que a educação transforma e os livros são asas que nos fazem voar pela beleza da vida, mesmo na feiura desigual do mundo. Pensar nessa história que escrevemos me dá a convicção de que com criança e educação não se economiza.  

É quando me recordo que aos nove anos, trabalhando como garoto de estacionamento, eu era rato de biblioteca. Entre o trabalho e a escola, sempre passava na Biblioteca Municipal Infantil e ficava ali escolhendo o livro que levaria para casa. Acho que li quase todos os exemplares que havia lá. É com sorriso largo que lembro da Marthinha. Doce Marthinha que sempre me recebia com um abraço caloroso. Conversávamos sobre o livro que levei na vez anterior e ela me indicava outro e mais outro. Ela sabia ler as crianças. Obrigado, Martha. Fui crescendo, encantado.  

Na biblioteca do Jamil ou na sala de leitura do mesmo colégio, entrei na fase dos livros em que se escolhia o caminho da história. “Se fizer isso vá para a página trinta, se escolher aquilo, siga para a página cinquenta”. Acredito que li a coleção toda disponível. Obrigado, professores. 

Na Biblioteca Municipal, não cheguei nem perto de ler todos os livros das estantes. Minha carteirinha era a de número vinte e dois. Pura sorte. Quando fui me inscrever, herdei o número tão baixo entre mais de três mil cadastrados. Criança pobre, tinha que me contentar com os títulos nada muito atualizados das prateleiras de ferro. Não dava para comprar livros. 

Eliane... Acho que esse era o nome da moça que trabalhava no empréstimo dos livros. Bem, a Eliane virou minha amiga e quando chegava a doação de um título mais recente, ela separava para mim e me perguntava se eu tinha interesse de ler antes de qualquer outra pessoa. Obrigado, Eliane.

O gosto por escrever só veio na Formação de Professores. Incentivado pela professora Alcilea, passei a escrever mais e mais até participar dos concursos literários do Ienf. Mais do que ler, escrevia sem parar. Enchi vários cadernos de poesias e textos variados. Ganhei alguns concursos e a partir dali nasceu o jornalista, cronista, seja lá o que sou. Um biógrafo do mundo e de suas fantasias. Obrigado, Alcilea.

O que os livros nos fazem? Abre-se um livro e nascem mundos, possibilidades, maneiras de crescer, sentimentos, sensibilidade, raízes, memórias, o inimaginável. Obrigado, Caio. Obrigado, meu menino maluquinho. Somos o improvável que a leitura liberta.                            

 

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