O médico e psiquiatra Franco Basaglia foi o precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano conhecido como Psiquiatria Democrática. Em 1961, quando assumiu a direção do hospital, iniciou diversas mudanças com o objetivo de transformá-lo em uma comunidade terapêutica. Sua primeira atitude foi melhorar o cuidado técnico aos internos, além de melhorar as condições de hospedaria. Porém, à medida que se deparava com a miséria humana criada pelas condições do hospital, percebeu que uma simples humanização não seria suficiente. Eram necessárias transformações profundas tanto no modelo de assistência psiquiátrica quanto nas relações entre a sociedade e a loucura.
Basaglia era grande crítico da postura tradicional da cultura médica, que transformava o indivíduo e seu corpo em objetos de intervenção clínica. No campo das relações entre a sociedade e a loucura, ele assumiu posição crítica com a psiquiatria clássica e hospitalar, por esta se centrar no princípio do isolamento do louco (a internação como modelo de tratamento), sendo portanto excludente e repressora.
A partir de 1970, quando foi nomeado diretor do Hospital Provincial na cidade de Trieste, iniciou o processo de fechamento daquele hospital psiquiátrico. Em Trieste, ele promoveu a substituição do tratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, da qual faziam parte serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas (chamadas por ele de “grupos-apartamento”) para os loucos. Em 1973, a Organização Mundial de Saúde (OMS) credenciou o Serviço Psiquiátrico de Trieste como principal referência mundial para uma reformulação da assistência em saúde mental. A partir de 1976, o hospital psiquiátrico de Trieste foi fechado oficialmente, e a assistência em saúde mental passou a ser exercida em sua totalidade na rede territorial montada por Basaglia. Como consequência, em 1978 foi aprovada na Itália a “Lei 180”, ou “Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana”.
A partir da segunda metade do século 20, iniciou-se uma radical transformação das instituições psiquiátricas e de suas formas de tratamento. Nesse sentido, iniciou-se o movimento de luta antimanicomial que nasceu marcado pela ideia de defesa dos direitos humanos e de resgate da cidadania dos que carregam transtornos mentais. Aliado a essa luta, nasceu o movimento da Reforma Psiquiátrica que, mais do que denunciar os manicômios como instituições de violências, propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias solidárias, inclusivas e libertárias.
No Brasil, tal movimento iniciou-se no final da década de 70 com a mobilização dos profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes com transtornos mentais. Em 1990, o Brasil tornou-se signatário da Declaração de Caracas a qual propõe a reestruturação da assistência psiquiátrica, e, em 2001, foi aprovada a lei federal 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Dessa lei, originou-se a Política de Saúde Mental que, basicamente, visa garantir o cuidado ao paciente com transtorno mental em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, superando assim a lógica das internações de longa permanência que tratam o paciente isolando-o. A Política de Saúde Mental no Brasil promove a redução programada de leitos psiquiátricos de longa permanência, incentivando que as internações psiquiátricas, quando necessárias, se deem no âmbito dos hospitais gerais e que sejam de curta duração.
Ainda na década de 1980, experiências municipais iniciaram a desinstitucionalização de moradores de manicômios criando serviços de atenção psicossocial para realizar a (re)inserção de usuários em seus territórios existenciais. Foram fechados hospitais psiquiátricos à medida que se expandiam serviços diversificados de cuidadolongitudinal ou intensivo para os períodos de crise.
O desafio que se coloca é, ao invés de criar circuitos paralelos e protegidos de vida para seus usuários, habitar os circuitos de trocas nos territórios da sociedade. Isso leva o desafio da saúde mental para além do SUS, já que para se realizar ele implica na abertura da sociedade para a sua própria diversidade. A aprovação de leis estaduais alinhadas com esses princípios ao longo da década de 1990 refletiu o progresso desse processo de mobilização social.
*Rafael Polakiewicz é doutorando em Ciências do Cuidado em Saúde (UFF), Mestre em Ciências do Cuidado em Saúde (UFF) e Especialista em Atenção Psicossocial
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