O médico cardiologista Marcelo Orphão Motta trabalha no Hospital Municipal Raul Sertã, Hospital São Lucas e Hospital Unimed, onde integra o comitê gestor de crise da Covid-19 e coordena o Setor de Pronto Atendimento.
Nascido no Rio de Janeiro há 53 anos, é formado pela Faculdade de Medicina de Teresópolis (1992) e pós-graduado em Cardiologia e Auditoria Médica. Radicado em Nova Friburgo desde 2010, em 2012 recebeu o título de Cidadão Friburguense e em 2019 assumiu o cargo de delegado do Cremerj — Conselho Regional de Medicina, em Nova Friburgo.
Contaminado pelo novo coronavírus, em setembro, nesta entrevista Marcelo Orphão vai além da abordagem sobre a Covid-19 e o trabalho nos hospitais, para contar como foi enfrentar a doença, passar de médico a paciente, sentir medo da morte e ficar afastado da esposa e do filho. “O isolamento acaba sendo uma tortura”, resumiu. Vale a pena conferir o seu relato:
AVS:O senhor contraiu o coronavírus e precisou ser internado. Como é lidar com a situação de passar da condição de médico a paciente? Como se sentiu quando descobriu que foi contaminado?
Marcelo Orphão: O medo é uma constante para o médico. Já havíamos perdido um grande colega, mas apesar da paramentação, do uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), mesmo assim estamos expostos. No dia 06 de setembro, comecei com febre baixa e coriza; no dia seguinte perdi 100% do olfato e do paladar, e aí me afastei das minhas atividades. Dois dias depois, realizei os exames de detecção e descobri a contaminação. A tomografia computadorizada de tórax já mostrou 15% de acometimento pulmonar e foi indicada minha internação no Hospital Unimed. Foi um susto imenso, pois sempre fui um dos mais preocupados com a proteção das equipes. Naquela altura já havíamos perdido dois colegas e outros estavam internados. O clima era de total apreensão. O pior do Covid é o isolamento, a falta de um aperto de mão, de um abraço. A saudade de meu filho e de minha esposa, as chamadas de vídeo, a internet, não são a mesma coisa. Não há calor humano, nem o brilho nos olhos em uma boa conversa. Além do medo da morte e das complicações, existe toda a preocupação com a sua ausência no trabalho, não estar com seus colegas, e as possíveis sequelas. O isolamento acaba sendo uma tortura.
Por que algumas pessoas, mesmo infectadas, não desenvolvem os sintomas?
O Covid19 possui sintomas variáveis, conforme cada caso. Depende muito da situação imunológica do paciente, como está sua saúde, suas defesas, se há doenças pré-existentes. O péssimo hábito brasileiro de não cuidar de sua saúde, não prevenir doenças, faz muita gente se achar saudável e descuidar da saúde. Ao ser contaminado, tem a tendência de uma doença mais grave. Idosos, hipertensos, obesos, diabéticos, imunodeprimidos possuem maiores riscos de manifestações graves.
Como é lidar com os dramas não apenas dos pacientes, mas de suas famílias? Quanto aos seus sentimentos como pessoa...
Adoecer e se tornar paciente, ter que se afastar, mas continuar preocupado com a família, no meu caso, com meu filho, minha esposa, enfim, ficar distante de todos, gera uma imensa ansiedade e muita tristeza. É muito difícil ter uma doença que mata, que você sabe e escuta diariamente que o mundo inteiro mudou sua rotina. Eu pensava muito em quem não consegue fazer o isolamento, em quem não tem acesso a um bom sistema de saúde. Passei a agradecer a Deus simplesmente por acordar, por RESPIRAR, por sentir o paladar voltar aos poucos, pelo sol estar brilhando e eu poder pegar sol. Essas pequenas coisas que temos todos os dias e sequer agradecemos. O Covid nos torna mais humanos, mais vulneráveis e nos mostra que muitas das coisas em que se acredita, não são realmente importantes. Todo o conforto do mundo não vale uma respiração livre, o direito de sentir o ar fresco.
Já teve oportunidade de acompanhar ou mesmo tratar pacientes com dengue, H1N1, zika, febre amarela? Doenças que podem se transformar em pandemias?
Trabalhei em outras epidemias, como a da dengue, em 2007, e era uma imensa loucura, cheguei a dormir em uma maca, às 4 horas da manhã. Nas outras doenças, não tínhamos tantos pacientes, a ponto de mudar as rotinas dos hospitais de forma marcante. E sempre sabemos, na Medicina, que a qualquer momento pode surgir uma pandemia mais letal. A solução é trabalhar e estudar, além de cuidar da saúde, é claro.
O quanto é diferente trabalhar em hospitais da rede particular e da rede pública?
As diferenças existem, pois nos hospitais particulares possuímos condições de atendimento, não faltam medicamentos, insumos. Não basta haver um médico sentado no consultório, precisamos de medicamentos, materiais, de equipes de enfermagem, fisioterapia, limpeza, recepção, segurança... Infelizmente, na maioria dos serviços públicos, as faltas, as desculpas, os materiais ou estão em falta, ou simplesmente não existem. Essa pandemia nos ensina também como é importante o SUS, o Sistema Único de Saúde. É imprescindível que todas as pessoas tenham acesso à saúde, e o quanto o SUS precisa ser fortalecido e despolitizado...
O que sabemos até o momento sobre sequelas da Covid-19?
Trata-se de uma doença nova, identificada apenas em dezembro de 2019. Ainda não se sabe muito, mas já existem casos de Síndrome de Guilan Barre, de doenças limitantes pulmonares, como a fibrose pulmonar, etc…, é tudo ainda muito novo.
Acha seguro a volta das aulas presenciais seja em que condições for?
Quando se fala em voltar as aulas devemos ter a empatia e pensar no todo. Existem famílias que estão com dificuldades em cuidar dos filhos, mas existem escolas sem a mínima condição de receber os alunos de volta. As escolas, sejam públicas ou particulares, devem ter todo um preparo rígido, efetivo e seguro para o retorno de alunos e professores. Não é justo jogar essa vigilância em cima dos professores, por haver escolas sem essas condições. Sou contra o retorno neste momento, apesar de compreender as dificuldades tanto do setor, quanto das famílias.
Como avalia a pandemia no atual estágio? Pode haver a tal ‘segunda onda’ no Brasil — quando ainda nem saímos da primeira —, como estamos observando na Europa?
Infelizmente deve voltar a piorar, pois muitas pessoas não acreditam, não usam máscaras corretamente, não respeitam a distância de contato ou, o que é pior – não acreditam na doença. Não é porque uma pessoa é obrigada, erroneamente, a frequentar ônibus cheios, que ela tem de se expor mais ainda em aglomerações como as observadas em bares e supermercados. O coronavírus não respeita política, não respeita sua opinião, simplesmente contamina e pode matar. Já atendi uma paciente que brigou comigo ao receber o teste positivo para Covid19, comprovando sua infecção, e ainda me acusou de estar fazendo isso para derrubar político do Poder. Saiu reclamando e dizendo que iria tomar toda a medicação que achasse certa. Semanas depois, soube pela família que ela estava em estado crítico no hospital. Não acreditar no vírus, ou politizá-lo, não vai resolver a pandemia. Algumas pessoas de baixa escolaridade querem discutir imunologias com profissionais...
Podemos contar com alguma vacina ainda este ano?
Para o lançamento de uma vacina, diversas etapas devem ser cumpridas para que chegue a todos e não somente a poucos privilegiados. Existe ainda toda uma operação de distribuição em um país continental como o nosso, por isso ainda não acredito que será em 2020. E que ninguém se iluda: a vacina não trará uma vida “normal” instantaneamente.
Sempre haverá o risco de novas pandemias? A partir de agora estamos fadados a viver com medidas restritivas, protocolos, máscaras?
O ser humano é facilmente adaptável e vai construir um “novo normal”. Sempre houve e sempre haverá risco de pandemia enquanto a Saúde não for levada a sério, tanto pelos governantes, quanto por cada um de nós. Alguém está preocupado com focos de dengue em seu quintal, agora? Pois deveriam. Continuaremos algum tempo com máscaras e cuidados, isso é um fato, independente de que se goste ou não.
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