Sujeiras e limpezas

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 05 de agosto de 2020

Os primeiros portugueses sentiam enjoo com o cheiro de limpeza dos nativos

— É o banho! Não tem outra! Você já viu alguém ficar doente de sujeira? Nunca, né? Agora, o sujeito toma banho, pega um vento pelas costas, cai logo de cama. Sujeira nunca matou ninguém, mas limpeza demais é prejuízo certo pra saúde. Muita gente já morreu por causa dessa mania de tomar banho todo dia.

Com argumentos sólidos como esse é que Paulão sustentava suas teses. E bastava ficar um pouco mais próximo dele para sentir o cheiro e perceber que, ao contrário do que ocorre entre os adultos, nele se reuniam teoria e prática, pregação e ação. Tanto que corria entre a molecada da vizinhança que a mãe, Dona Matilde, pelo menos uma vez por semana pegava o filho pela orelha e o enfiava embaixo do chuveiro. Isso com um filho de treze anos e já bem mais alto do que ela.

Outra teoria de Paulão, semelhante à primeira, era de que lavar a cabeça com frequência provocava queda de cabelo. Com dados irrefutáveis, doutrinava os demais meninos do bairro:

— Teu pai é careca? Não é, né? E ele lava a cabeça todo dia, usando aquele negócio cheiroso que rico usa, o tal do xambu? Agora vê os alemães lá da fábrica: tudo careca, é ou não é? O motivo tá na cara: rico lava a cabeça todo dia.

E se ponderassem com Paulão que na fábrica tinha também alemão com cabelo, ele explicava que isso era porque “esse alemão ou já foi criado no Brasil ou tinha babá brasileira. Aí, já viu, né? Relaxavam e não davam banho na criança. Sorte dele, que não ficou careca igual a seus convertorrâneos. Ou então é peruca!”

Nunca pude seguir integralmente os ensinamentos desse meu amigo de infância, talvez porque minha mãe tinha opiniões inteiramente contrárias às dele e era mais enérgica do que Dona Matilde. Mas, falando francamente, não discordo inteiramente do que ele dizia. Basta observarmos que os franceses até pouco tempo atrás não eram chegados ao banho diário, e essa é a razão provável de terem inventado tantos perfumes, com os quais tentavam substituir a água e o sabão. A desculpa era que na França a maioria das casas tinha banheira e não chuveiro. Como encher uma banheira exige muito tempo e paciência, o pessoal acabava desistindo e deixava a faxina corporal para a próxima semana.

Parece que com o aumento do número de chuveiros, a situação melhorou um pouco, mas ainda hoje os franceses perderiam para os índios brasileiros, que viviam mais dentro dos rios do que na terra, eram quase anfíbios. Razão pela qual os primeiros portugueses sentiam enjoo com o cheiro de limpeza dos nativos, e estes fugiam dos recém-chegados por causa do mau cheiro que deles provinha. Então quando levantavam o braço para enfiar a espada no pobre do selvagem... as axilas lusitanas matavam mais do que as armas. Num dos livros de Graciliano Ramos há uma cena que bem mostra que esse negócio de banho não é costume universal. Algumas pessoas conversam numa sala e a certa altura uma senhora pede licença para recolher-se, porque ia banhar-se. Mal ela virou as costas e um dos presentes sussurrou para outro: “Mulher porca!” Ou seja, porca porque precisava tomar banho, necessidade que não aflige as pessoas limpas por natureza.

E não se pense que a nobreza é mais asseada do que a plebe. Numa carta de Napoleão (ninguém menos do que Napoleão!) o grande general pede a sua esposa que ela não tome banho nos próximos três dias, porque ele está voltando para casa e cheio de saudades. Assim também é demais! Mas, enfim, é coisa de francês, é très chic!

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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