Hiatos

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 18 de abril de 2020

Em frente a tela branca do computador... As palavras me escapolem e não interrompem esses hiatos... Entre meus pensamentos e minhas mãos, entre minhas mãos e o teclado, entre o teclado e as placas do computador, entre as placas do computador e o monitor. Logo serão hiatos também o meu e-mail para o e-mail do editor, do editor para o copydesk, entre o copydesk e o diagramador e finalmente entre o jornal e o leitor. É um efeito dominó.

Antigamente, seria mais poético. O hiato residiria nessa falta de inspiração entre o coração do poeta e sua mão direita ou esquerda, porque uma delas seguraria um cigarro de fumo de rolo, quando não o cigarro seguro pelos lábios num malabarismo atraente. O hiato estaria entre todos esses hiatos na redação e não nessa solidão do home office. O barulho das teclas duras das máquinas de escrever Underwood nº 5, que só os chefes tinham, confundidas com as batidas ligeiras das icônicas Hermes 3000. Como uma orquestra. Talvez esse som de concerto desconcertante afastaria os hiatos, especialmente o primeiro hiato que gera todos os outros.

Gente, fumaça de gente, barulho, como vira-lata atrás de histórias do cotidiano que pudessem mitigar o destino de quase toda página de jornal: embrulho de peixe. Essa tal inspiração não vem de dentro da gente. Mas do nosso respirar de fora. Soberba achar que nos resolvemos sozinhos. Nem nossos textos existiriam só pela gente mesmo. Plantamos em letras, tudo aquilo que colhemos do mundo. Mundos pequenos como de uma redação, mundos extensos como de uma cidade. Mundos mínimos como de uma reunião, mundos infinitos como de um coração que batemos na porta para entrar. Se deixar entrar – basta para meu coração ficar em festa.          

Não sei. Às vezes, me pego pensando que nasci na época errada. Não porque sou especial. Até porque, creio que todos já se flagraram, meio que no susto, com esses devaneios. Será que vim no tempo certo? Talvez do futuro ou tão nostálgico com o que gostaria de ter vivido para se considerar do passado. Melhor mesmo seria ser do futuro, no passado. Até descobrir que rechaçamos o presente por pura ingratidão ou mera ansiedade. O tempo causa hiatos. Essas fendas existem apenas na nossa imaginação.

De repente, quando nos abrimos como um livro que não pretende ser lido, os hiatos vão para a gaveta. O que estava na gaveta dá lugar aos hiatos, pois como provou Newton, “Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”. Ainda que sejam lacunas, vácuos. Lacunas e vácuos também ocupam espaço e, deveras, irritam mais do que bilhetes malcriados, memórias ruins, dores, saudades e boletos bancários. Boletos bancários nem tanto, dependendo do número de zeros à direita. Mas perfilados, os hiatos vão como um exército bem treinado para a gaveta e o que sai da gaveta... Susto! Não vem nada domado ao ponto de não ser um pelotão que quer guerra, nem paz. Apenas vem e sem ordem ou lógica, vai saltando para os meus pensamentos que movem os meus dedos e vão preenchendo o papel em branco, letra por letra, palavra por palavra, frase por frase...

Só queria estar na contramão, tomado por uma sala cheia de gente.

 

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