Todo fim de amor é infinito

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 22 de maio de 2021
Foto de capa

Um coração vazio só é vazio porque sabe o que é ser habitado. A presença de outrora de morador é que faz perceber a ausência que causa. Causas são o que faz o coração pulsar, a alma se encantar e os sonhos terem sentimento. É o que desperta, mesmo aquilo que está disperso e que na confusão dos átomos nos permite ser: sujeito da própria história que invade e se deixa ser tomado por outras histórias. Faz sentido?

Todo dia morre a mãe de alguém, mas só uma vez para si mesmo. Todo dia um amor acaba e é o fim que faz esse amor ser infinito. Nenhum amor tem a pretensão de ser infinito com esse roteiro. Mas, talvez, os amores só sejam mesmo infinitos na admissão de sua finitude. Pudera ser apenas admitir, dar de ombros e seguir de mãos dadas, laços amarrados, pensamentos conectados. Pudera a vida ser para sempre e que nenhuma mãe morresse. 

Antes das coisas existirem, muitas outras existiam. Talvez seja essa a sacada do universo. De algum lugar partimos para essa aventura de bilhões e bilhões de anos. 

Tantas transformações, evoluções, previsíveis ou não. Tantas invenções, reinvenções, naturais ou não. Tantas chegadas e também despedidas. O infinito é mesmo um sujeito - se é que se pode dizer que é um sujeito - sarcástico desgraçado que na sua comicidade reverencia o fim para poder nascer e existir. É a lei da selva, é a lei da vida. 

Todo mundo morre antes da hora: os bons porque ainda têm que fazer mais bem e os maus porque precisam de mais tempo para se regenerar. Na necessidade de ambos, é certo de que os dois poderiam mais se tivessem mais tempo. Já não sei se o tempo é o bobo da corte ou se o infinito é rei charlatão. Quanta brincadeira de mau gosto. 

Mas não nego que o infinito é busca tão bonita, até cair o seu disfarce. A finitude derruba nossas fantasias, intimida nossas certezas ao ponto de aniquilá-las. É possível driblar? Se o amor não é infinito, seu fim é. Porém, registre que é no medo que a gente se veste de coragem.

Ainda fabricam caixinhas de música? Seria audácia encomendar uma réplica daquelas do século XIX? Gostaria que seus cilindros pudessem reproduzir o som poético de Johann Pachelbel, Canon in D Major. Que o som dessa caixinha de música invada o espaço, silencie os satélites e permita ao amor a ousadia de enganar esse tal infinito que mora no fim. Não quero o fim de nada. 

Brindo à liberdade dos começos. Oro pela extensão, por toda extensão, que estende o fim ao ponto de não temer, tampouco o reconhecer, para continuar. 

E, ainda na mesma melodia, vislumbrar o sol do meio-dia iluminando o Sul e o Norte. Desfeito do coração virgem, caminhar pelo centro dos dois (Sul e Norte) e se permitir - ainda que em doce sonho - romper a lógica de que o infinito nasce do fim. 

Beijar as mãos dessa contemplação, olhar o brilho da lua futura e prometer amor eterno, pois o eterno há de ser mais longevo do que o infinito.          

 

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