O samba

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 19 de novembro de 2022

Obra de arte que o negro esculpiu, ritmo oficial da marca Brasil, tem seu berço na casa de Ciata. Dos batuques vindos da África, do ritmo marcado pelos corpos escravizados, mas revolucionários em manter suas tradições, ritos, espiritualidades – identidade. 

O samba liberta. Das senzalas, da proibição a marginalização. Resistência de um povo ainda em construção. O samba clama nas rodas pela tal liberdade que ainda não veio e nas avenidas de tantos carnavais segue a cantar por reparação histórica, contra o preconceito, abaixo a discriminação. E o preto repete seu direito: escravizada a minha cor, mas minha alma jamais.

Será difícil entender que o sangue é vermelho para todas as cores? Sambamos na mesma roda e carregamos a mesma ancestralidade. Mas a crueldade da história, de muitos que vieram antes de nós, exige desagravo contínuo até se atingir igualdade. 

O samba segue a lamentar, segue a panfletar, segue a enfrentar e chamar para repetirmos versos em novos e velhos refrões: nos amarmos mais, nos cuidarmos mais uns dos outros... Desaprender o racismo estrutural, sem esquecer o passado para evitar repeti-lo. Convocar a história para compreender a âncora que não nos deixa seguir para futuros mais bonitos. 

Dos tambores de além-mar, dos atabaques da terra dos Baobás, cavaco, viola, até palmas das mãos. Pano branco estendido na mesa, no meio das praças, becos, vielas, fundos de quintal. Vozes e instrumentos que entoam consagração ao amor, à vida, à saudade, ao que é mortal e imortal. Em cada canto, relembrar os “Papagaios” que existem em cada cidade e se perpetuam em “Filhas de Bamba”. 

Nas quadras, se emocionar com os baluartes — hoje Velha Guarda — protagonistas de tantos desfiles e enredos. Das Tias “Celices”, Terezas, das donas “Glórias”, das baianas pretas da Unidos da Saudade e de todas as escolas de samba de todos os lugares.          

Toque do atabaque, que no axé dos orixás, faz quem vem de longe voltar cá. Reverencia Oxossi, Xangô, Yansã. No Império das Negas, rainha é Iemanjá. Tolerância religiosa é pouco. Fé não é algo apenas a se tolerar. É para respeitar! O Brasil é mais africano do que laico, mas à disputa de poder, a narrativa branca europeia esquece as raízes pretas e indígenas desse país de samba, carnaval e terreiros de matriz africana.     

Samba entoado pelas torcidas nos estádios para celebrar “negros maravilhosos” com seus dribles, gols e maestrias que orgulham nossos times. Relembrar os Camisas Negras, que no país das desigualdades, enfrentaram as regras de preconceito e abriram alas para Pelé, Everaldo. Para Natal, Cabrita, Paulo Banana.

Faz um samba aí, daqueles dos bons. Para tocar na roda que se faz todos os domingos no Córrego Dantas. Para sambar às segundas no icônico Samba do Trabalhador do Renascença. Para apresentar à Leci nas esquinas de Sampa. Para voltar à Bahia, onde tudo começou. Para embalar o ensaio da Portela, desfilar na Vilage ou no Imperador. Para tocar com garfo no copo americano no Bar do Bizu, ou se embriagar no América a performance dos Desafetos do Colírio. Chama o Gibi para o churrasco e faz mais um samba lá. Para Kaisso brincar na Grande Rio, campeã com Exu. Faz um samba aí, porque o samba é preto, é branco, é humano, raiz dos sonhos de quem ainda acredita que da “unidade vai nascer a novidade”. Axé.

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