Digitais

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 21 de outubro de 2023

Como podem existir milhões de mãos iguais e cada uma ser única? Nenhuma mão que existe ou existiu tem as mesmas impressões digitais. Os dedos alongados podem se assemelhar, o tamanho da palma pode até ser exatamente o mesmo, o formato das unhas pode ser igual, mas mesmo as mãos de gêmeos univitelinos têm desenho único, curvas exclusivas, incomparáveis.

Imagine que um mesmo artista pudesse pintar bilhões e bilhões de quadros, cada um com traços diferentes. Parece impossível. Mas não para a criação dessa maravilha que é a nossa espécie.

E isso é absolutamente incrível: a sua digital, só você tem. Ninguém que existiu antes de você, ninguém que existe neste planeta de mais de oito bilhões de pessoas, ninguém que vier a existir, ainda que se triplique a população atual, terá digital como a sua.

Assim, o que você faz tem a sua marca exclusiva. Pode não parecer nada especial, mas você é inimitável e no mínimo um diferencial você tem: a sua digital. Portanto, claro que isso é especial, tanto como é extraordinária a sua história e cada parágrafo que você coloca nela.

Adicionam-se outras digitais, igualmente únicas, a cada capítulo que escreve e se atravessa aos seus, tanto quanto os seus se unem a outros capítulos de incontáveis encontros com pessoas com as suas também exclusivas digitais. Vamos colocando nossas assinaturas e recebemos assinaturas tão nossas, das nossas vivências, das costuras que fazemos e das linhas que se costuram a nós.

As ciganas lerão nosso destino. “O caminho é todo seu”. As linhas da mão como mapa da vida. Por onde percorrer, onde haverá de se ter mais cuidado para não escorregar? As limitações não premeditam nada. A escolha caberá aos seus passos e sua exclusiva cartografia é apenas guia auxiliar.

Tanto por acontecer, tantas surpresas à espreita. Na jornada de ser e de se dar — pertencer. De repente, no peito, escolhemos certa digital e oferecemos a nossa digital para compartilhar aventuras e cotidiano. Se uma digital é tão sem igual, imagine unir duas digitais. Nada se repetirá tal como, no mundo inteiro e em toda a existência da Terra de milhões e milhões de anos habitada por nós. Difícil até devanear.    

Quando eu era criança, eu vivia colocando sangue pelo nariz. Na escola em que eu estudava, não me lembro de outras crianças terem a mesma situação. Era um corre-corre danado. Inclinavam minha cabeça para o alto, apertavam o osso superior das minhas narinas. Outras vezes, vinham com um pano com gelo para estancar a sangria. Nos dias de calor, a cena se repetia quase que diariamente. Eu gostava daquela atenção. De matar aula também. Afinal, era um bom motivo. Fiz várias microcirurgias para queimar os vasos abertos. Fiz cirurgia de desvio de septo.

Talvez, meu nariz tenha mudado, minha face tenha inchado, mas minhas digitais são as mesmas. As digitais nunca mudam. Assim como ninguém pode roubar sua história, suas façanhas, seus sonhos.

Pode parecer uma mistura de ciência com ingenuidade. Nutrir de poesia a biologia. Querer suavizar essa crueldade que o tempo faz com nossos corpos. Ainda na barriga da mãe, nossas digitais vão se desenhando e não se alteram mais. Somos uma obra de arte única que tem o poder de criar um milhão de possibilidades. Mas a marca daquilo que fazemos não se sabota. A nossa digital imutável estará lá, mesmo depois da nossa morte.

Se é tão única a digital, o que dizer da alma... Ou seria a alma a própria digital?       

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