Dançar como a minha música

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 20 de novembro de 2021

Que o corpo possa seguir as notas da música e cada célula possa escapulir nos falsetes que o artista faz. No envolvimento entre o físico e o sobrenatural, que a voz encontre mais do que os instrumentos, mas o paralelo entre existir e ser feliz. Pudera serem pleonasmo: existência e felicidade. Abundância que não tira do outro, mas se multiplica.    

Seria devaneio acreditar que se pode dançar como a sua própria música? Deslizar por suas notas no passo a passo do cotidiano? Reverberar ainda mais em seus ecos e, de repente, tocar? O outro, o tempo, a si. Será a nossa música mesmo tão exclusiva? Será possível dançar como a sua música dança? Terá toda música – dança?

Quero e preciso. Deixar a voz levar e a música conduzir o corpo, quiçá a alma. Ser compositor de meus próprios versos, mas também pegar emprestadas as rimas de quem me olha com brilho nos olhos e de quem quero conceder meu sorriso fácil, minhas lágrimas incontidas, minha emoção inexplicada. Inspiração. Posso ir além. E pegar para nós os presentes geniais de Belchior.       

Não é teimosia tola querer novos vícios para além de cantar Tim Maia quando ébrio. A coleção da irresponsável alegria é a melhor de se ter fora da prateleira. Livros e discos não merecem poeira, tampouco o destino de serem mera decoração. Alegria não é troféu dentro de uma redoma de vidro. Alegria é esse instante agora que se consome enquanto a agulha desliza por cada faixa do vinil. O presente tem sido nostálgico, talvez para impressionar e pressionar por um futuro melhor.      

Não verei Belchior cantar na minha frente. Tampouco terei a experiência de comprar ingresso para o show do Tim Maia na incerteza de que terá ou não o Tim no palco. Mas suas músicas seguem a acompanhar os dias para além de hologramas. Seguem em suas próprias vozes, nas vozes de outros, nas nossas próprias vozes. Quando muito felizes ou quando tristes. Música imortaliza e se renova, mesmo igual, em novas reflexões.

Compor é dar ritmo à poesia – tom. É entrega e revelação. É se despir sem ter vergonha dos mamilos, membro, pelos e mais profundo que toda carne e ossos, atingir o invisível que causa o arrepio. Muito mais do que colocar sílabas e versos em organização. Se dançarino de suas letras – comoção. No seu tempo e para seu tempo, ainda que se estenda para outros tempos em existências alheias.

Compor, cantar, ouvir, dançar. Diz muito sobre cada um de nós, sobre cada um de nossos momentos. E é bom deixar em aberto definições, pois definir é raso demais para verbos tão íntimos do existir.               

Por vezes, sou uma América Central num corpo só. Ou seria Humaitá, onde todos os caminhos se encontram? O drama me teme. Mas só peço para dançar como as minhas muitas músicas. O momento de cada uma delas eu escolho e deixo o mundo também decidir. Porém, às vezes coloco o fone e não ouço mais nada em volta. E sei que nada disso é exclusivo para mim ou a mim.    

Compositor, cantor, dançarino e plateia. Pode se querer ser tudo ao mesmo tempo, mais do que estar em dois lugares no mesmo instante. Ser tudo ao mesmo tempo, afinal, é bem mais possível do que estar em dois lugares ao mesmo instante. Se não fosse a música... O impossível não seria tão atrativo - possível.    

 

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