Dá-me um coração igual ao teu

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 02 de outubro de 2021

“Dá-me um coração igual ao teu, meu mestre. Dá-me um coração igual ao teu. Coração disposto a obedecer, cumprir todo o teu querer...”. 

Enquanto ouvia essa música na missa, eu pedia, em oração, um novo coração para minha mãe. Não um novo coração de mãe, pois a minha mãe foi a melhor mãe que eu poderia ter. Mas um coração físico, no lugar do coração cujos músculos se ampliaram de tal forma que não pulsava mais direito e precisava ser trocado. 

Deus não deu a ela um novo coração. Porém, me deu um novo coração. Cheio de saudades, forjado de força e preenchido pelo tal amor que jamais passa.

O fraco coração de minha mãe paralisou no dia 21 de dezembro de 2013, após longa espera. Lembro que naquela data, uma entre tantas outras profecias, estava prevista mais um dia para ser o fim do mundo. Foi para minha mãe. Foi de certa forma também para mim e meus irmãos. 

A perda da mãe, do mundo físico para o espiritual, é certamente um dos momentos mais tristemente marcantes da trajetória de todos. Um dia que nunca se esquece, cuja dor se aquieta, mas permanece lá repleta de saudade.  

Assim como eu, muitos filhos pedem por um novo coração para seus pais. Muitos pais pedem novo coração para seus filhos. Milhares de brasileiros pedem um novo coração na imensa fila da doação de órgãos.

O Brasil avançou, ainda que tenha tido retrocessos nos últimos tempos, na doação de órgãos. Mas desperdiça muitos corações e outros órgãos aptos para a doação que prolongariam ou trariam novas perspectivas para a vida de muitos. Uma vida findada que se perpetua em outra. Nada mais cristão. 

Ainda há um abismo entre o Estado do Rio de Janeiro e o de São Paulo, por exemplo. A proporção de cirurgias desse tipo realizadas lá é imensamente maior do que daqui. Não porque lá existam mais doadores. Não se trata disso. Se trata de estrutura médico-hospitalar. Se falarmos então de interior, no RJ praticamente inexiste doação de órgãos. Lamentável.       

Enquanto a política não avança em favor da vida, sei que o drama particular de minha mãe é coletivo. É preciso mais do que retomar as campanhas de doação de órgãos, mas fazer com que funcione na prática em mais unidades hospitalares, com as devidas estruturações de mobilidade e conservação dos órgãos. É algo delicado e que exige pressa das equipes médicas e acompanhamento.

No meu coração – saudade e desejo de que outras mães e filhos tenham melhor sorte do que a da minha família. Não imaginem que tenho um coração angustiado ou aborrecido com Deus. Sou imensamente grato pelos 52 anos de vida de minha mãe e todos os anos que tive o privilégio de ter tido o colo dela. Óbvio, meu egoísmo faz com que eu quisesse muito que ela estivesse aqui, com o que seriam hoje seus 60 anos.

Agradeço por essa saudade que foi construída cujas recordações vão além das fotos que vejo. Está no cheiro do café da manhã e do cangote; no gosto único do pastel dormido de carne de porco; no aconchego do rosto de quem encontrava no colo dela proteção; nas músicas, em cada canção do rei Roberto Carlos, cujos vinis dela permanecem sob minha guarda.

Peço todos os dias um novo coração para mim e para a humanidade. Um coração mais misericordioso, mais apaixonado pela vida, respeitoso e empático. Coração que se assemelhe de fato ao coração de Cristo.

Corações que acolham e amem. Nada mais sobrenatural e cristão que o amor. Coração que ama transpõe o físico e nos entrega espiritualidade.

 

Foto da galeria
Publicidade
TAGS:

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.