As canções que você fez para mim

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 23 de abril de 2022
Foto de capa
(Foto: Pexels)

Minha mãe tinha todos os LPs do Roberto. Na verdade, o único que ela não tinha era o primeiro: “Louco Por Você”. Uma raridade. A editora Columbia lançou apenas mil cópias e o Rei Roberto jamais permitiu que o álbum de 12 músicas fosse reeditado ou mesmo que suas canções fossem colocadas no streaming. 

Muito mais pelo valor documental do que pela qualidade das canções, a tiragem original de 1961 (mesmo ano de nascimento da minha mãe) é um dos discos mais caros do mercado fonográfico brasileiro. Mamãe, costureira vinda da pobreza da roça, jamais pode comprar esse disco, mas juntava seu dinheirinho para ter cada lançamento. Tinha todos os demais e herdei cada um deles, guardados comigo como parte de minha presente saudade.

Quando começaram a reeditar os discos em CD, mamãe também começou a colecionar os do Rei. Mas o CD não tem graça diante da magia do vinil. A capa grande e robusta. O plástico transparente que protege o patrimônio para evitar que arranhe.  O brilho preto com as faixas visíveis em relevo. Um quase êxtase colocar o borrachudo na vitrola e com cuidado repousar a agulha na primeira faixa. Enquanto roda no encontro com o toca-discos, o tempo passa e as músicas — mesmo as não preferidas — são apreciadas com a devida sensibilidade de quem para diante da poesia que o mundo despeja em nós.

Tarefa árdua, mas prazerosa é encaixar a agulha no ponto certo da canção desejada. E repeti-la e repeti-la de novo até “afundar” aquela faixa. Coração apaixonado é bobo mesmo. 

Talento para parar a canção no ponto exato tinha a saudosa Mirtes de Oliveira. Além de discotecária do excepcional acervo que tinha a Rádio Friburgo AM, ela fazia as de operadora de áudio. Havia um programa que tinha a promoção, por telefone, em que o ouvinte tinha que continuar a música. Mirtes conseguia parar quantas vezes fossem necessárias no mesmo lugar da faixa que estava no roteiro da atração. Mais do que saber as faixas, ela sabia onde estava cada um dos mais de 10 mil vinis, com inúmeras raridades, incluindo o primeiro disco do Roberto. 

Legado de cuidado que foi mantido por Alcemir Rodrigues, até que a Emissora das Montanhas resolveu doar todos os discos. Alguns foram para os funcionários. Conta a lenda que o primeiro disco do Roberto Carlos ficou com Carlos Reis, funcionário quase que desde a fundação. Outros foram para o Pró-Memória. Além dos LPs, foram doadas também as máquinas de gravar vinis que os abnegados funcionários da Rádio conseguiram guardar com esmero por longos anos. Para se ter uma ideia da grandeza dessa coleção, a discoteca da Rádio Cipó só perdia para a da Rádio Globo, no Estado do Rio de Janeiro.                        

A música movimenta o mundo. Seduz nossas nostalgias. Alimenta as nossas memórias. Para além do que se ouve, o objeto, o plástico preto, exponencia esses sentimentos, pois tem todo um ritual que o streaming não entrega. Ritual esse que a contemporaneidade, com sua pressa, trata de tentar extirpar. Mas a saudade, a resistência e a vontade de viver aquilo que não se viveu, faz jovens há menos ou mais tempo, trazer de volta essa magia.    

Independente disso, também não sejamos radicais. Não importa se por vinil, CD, DVD, MP3 ou streaming, a música é a poesia que inunda a alma. Faz nossas efêmeras existências serem mais prazerosas, ainda que vez ou outra mais doídas. E a música é que dá esse toque de amenidade ou perversidade para cada instante. Afinal, o que seria dos romances sem música? O que seria de qualquer história sem uma trilha sonora? O que seria de nós? 

A música dá o tom para a aventura, ritmo para os dias. Intérpretes e canções marcam nossa trajetória. É como se dessem razões para as nossas biografias e encontros, ao ponto que, algumas músicas parecem até que foram feitas para nós. Por que não? Somos adeptos a vestir fantasias e ninguém pode arrancar as fantasias que nos damos. Obrigado, Roberto Carlos, pelas canções que fez para a minha mãe. 

 

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