Todavia

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Lendo a biografia de Woody Allen eu me deparei com uma afirmação que
é contrária ao que tenho lido e escutado ao longo de anos. “Você pode viver
até os cem anos se abandonar todas as coisas que fazem com que você queira
viver até os cem anos.” Parei, olhei para o teto revirando os olhos em várias
direções, mas sem nada ver, apenas pensando. De repente, minhas ideias se
aproximaram da letra do samba, gravado por Zega Pagodinho, “Deixa a vida
me levar”.
Essas proposições trazem toques de sabedoria porque a vida tem
grandezas que os projetos individuais não conseguem vislumbrar e abraçar em
maior profundidade. Se somos seres de decisões e, de fato, somos, estamos
diariamente direcionando nossos destinos, na maioria das vezes, às rédeas
curtas. Ora veja, se deixamos a vida nos levar, nossos canais perceptivos se
abrem e captam outras possibilidades, como largar os afazeres, tomar um
sorvete durante a tarde e deixar-se levar pelo prazer daquele instante.
A letra desse samba (na verdade, sua autoria não é do Zeca Pagodinho,
e sim do sambista Serginho Meriti) tem preciosidades. Olhem isso. Todo
mundo canta o refrão da música, recita a estrofe diversas vezes,
principalmente quando a melodia dá para entrar na nossa cabeça e nos faz
cantarolar. Porém, meus amigos, não sabemos do restante da letra. Ficamos
fixados em poucos versos e deixamos escapar outros que podem nos ser
proveitosos. “Confesso que sou\ de origem pobre\ mas meu coração é
nobre\Foi assim que Deus me fez\.... Sou feliz e agradeço\Por tudo que Deus
me deu.
Naquele momento em que rodopiei meu olhar pelo teto, talvez quisesse
saber o que a vida me deu de presente e eu não valorizei. Nem reconheci.
Estou sempre preocupada no que tenho que fazer, entretanto não penso no
que eu não tenho de fazer, o que poderia muito me acrescentar.
Não sei se vocês perceberam, estou substituindo a conjunção “mas” por
outras. Por que não costumo usar “todavia”, “contudo”? Se depois de uma

dificuldade, fizer questão de empregar “todavia”, vou me deparar com a
esperança, com a luz no final do túnel. Quero me chamar Tereza Todavia! Por
que não?
Não poderia deixar de me lembrar da poesia “Instantes”, de autoria de
Nadine Stair, que vai ilustrar o meu sentimento de apenas querer viver.
Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima, trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,

relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvete e menos lentilha.

Teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata
e produtivamente cada minuto da vida:
claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver,
trataria de ter somente bons momentos.

Porque, se não sabem, disso é feito a vida, só de momentos;

não percam o agora.
Eu era um desses que nunca ia
a parte alguma sem um termômetro,

uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas;

se voltasse a viver viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,

começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,

contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,

se tivesse outra vida pela frente.

Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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