O escritor e a suspensão da descrença

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sim, senhor!, os escritores são aventureiros nos bosques feitos de ideias e palavras. Alice caiu num buraco, chegou ao fantástico País das Maravilhas e fez com que emergisse de Lewis Carroll a mais pura criatividade. Quem lê e aprecia a obra literária de qualidade tem a sensação de viver a realidade ficcional de forma parecida, não vou dizer semelhante, da que vive na realidade concreta na qual está inserido. E aí está o grande desafio enfrentado pelo escritor: construir um texto ficcional de modo que o leitor não se sinta ultrajado de pensar que a leitura não ultrapassa os meandros da imaginação.

A literatura tem a expertise que deve ser considerada quando alguém decide se tornar escritor de ficção. Escrever não é magia. É trabalho sobre trabalho. É um processo de criatividade sério e responsável. Assim do nada, repentinamente, as ideias vão chegando, embaralhadas, tomando corpo no texto através de trilhas criativas, enfrentando o mais terrível inimigo invisível, que está esplendidamente deitado na página em branco, escondido nos espaços entre as palavras e linhas. Aquela pessoa que se quer fazer escritor, depois de avançar em bosques tortuosos, beber águas frescas e sofrer ataques de pouquidade imaginativa, consegue vislumbrar a arte literária, a beleza das palavras e a profundidade das ideias, enquanto expressão do seu pensamento imaginativo. Criar uma obra literária consistente, capaz de ser lida em qualquer tempo e lugar.

Escrever é imaginar com inteligência, é transpor para o papel e revisar, revisar e revisar. É cuidar da beleza das frases, da construção de um texto instigante e inédito. É pensar no leitor, naquele ser que vai perceber o escritor através dos personagens, penetrar nos âmbitos de sua alma como um convidado especial. É uma pessoa responsável pelas ideias que vai plantar no leitor, aquele que, num ato solitário, abandona os afazeres quotidianos, toma seu texto para se entreter. Para simplesmente ler e degustar uma realidade feita de palavras, pontos e vírgulas, totalmente irreal e abstrata.

A suspensão de descrença, de descrédito ou incredulidade refere-se à vontade do leitor ou espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas ou impossíveis. É a suspensão do julgamento em troca da premissa de entretenimento. Ao entrar nos bosques da ficção, o escritor precisa ter a ciência de que vai escrever uma fantasia verossímil. E o heterônimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, pode ter lançado os princípios da ficção quando escreveu no “Livro do desassossego” “Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.” Eis, então, o terrível desafio que o escritor enfrenta, ser fiel à mais verdadeira mentira, fazendo o outro acreditar que o texto retrata o acontecer e que os personagens são reais. Precisa fazê-lo bem: com capacidade de comunicação e sutileza, com serenidade e coerência, sabendo ser sedutor para entreter e manter o leitor ali, mergulhado no texto que ele construiu.

Para finalizar, deixo o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, que expressa o que eu quis dizer em todas as linhas desta crônica.

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que ele não tem.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.    

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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