O arrependimento e a escova de dentes

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 08 de abril de 2024

O modo como construímos a vida é decorrente das decisões que tomamos. Decidimos desde o momento em que acordamos e colocamos os pés no chão, se o direito ou o esquerdo, até deitarmos a cabeça no travesseiro à noite. Não damos um passo sem decidir, dado que somos seres de juízo com autoridade sobre nós mesmos. Essa é uma consciência que vamos construindo ao longo da vida, desde quando aprendemos a expressar o sim e o não. Simples assim? De certo que não.  Se, por um lado, o medo de errar influencia a decisão que pretendemos tomar e no modo como fazê-la, principalmente quando o arrependimento pincela as sensações, por outro, as decisões impulsivas podem nos criar verdadeiras emboscadas. Aprender a tomar decisões é a maior e mais longa escola que podemos cursar.

Estou lendo o livro “A Biblioteca da Meia-Noite”, do romancista e jornalista inglês Matt Haig. Uma história de ficção fantástica em que a protagonista, uma mulher de 35 anos depressiva e com pensamentos suicidas, abandona vários projetos que ela mesma criou. A cada dia a impressão de fracasso e inutilidade vai crescendo em suas sensações, até que pensa em dar um fim à sua existência quando seu gato morre atropelado porque ela havia deixado a porta aberta. Naquele estágio de dúvida entre a vida e a morte, vê-se numa biblioteca, onde há livros que contam histórias sobre as opções que abandonara e de como seriam realizadas. 

É um livro impactante posto que a leitura nos faz refletir sobre as decisões que tomamos. De repente seguimos um rumo e abandonamos outro. Sabemos o que nos aconteceu em consequência do que decidimos, mas desconhecemos o que teria acontecido se houvesse outra opção. Em “A Biblioteca da Meia-Noite”, a personagem vai relembrando o que não viveu. A cada desistência é tomada de arrependimentos, como ter deixado a natação. Então, recebendo a atenção de uma bibliotecária, vai percorrendo os desafiadores caminhos que poderia ter percorrido, o que poderia ter conquistado ou perdido, os embates que teria de enfrentar, as felicidades e tristezas. Os encontros e desencontros.

Tenho o hábito de imaginar que o que não vivi teria sido melhor face às dificuldades que enfrento em decorrência de uma decisão que tomei. É uma fantasia e tanto habitar no Jardim do Éden!

O pensamento budista engrandece as relações de causa e efeito. Tudo o que fazemos gera consequências, às vezes quase infinitas, por assim dizer. O acaso existe, não há quem duvide. Entretanto, uma decisão leva a outra e a outra e assim por diante. A inteligência é fundamental na construção do nosso destino. Contudo, meu amigo leitor, a intuição não pode ser negligenciada, enquanto capacidade de pressentir ou prever uma situação futura, sem o conhecimento da causa e do efeito com maior profundidade.

Uma decisão bem tomada acarreta consequências desejáveis. Mas as impensadas e mal avaliadas podem problematizar a vida. Aliás, decidimos para evitar problemas ou resolvê-los. 

Por que escovamos os dentes? 

Um arrependimento pode se arrastar por um bom tempo, talvez pela vida inteira. É como uma condenação que nos sentencia ao pesar. Há situações em que podemos voltar atrás e decidir novamente, mas outras, infelizmente não.

Por outro lado, o arrependimento é uma forma da gente aprender com o erro. É aí que está o pulo do gato. O bom jogador guarda o erro como a carta de virada do jogo e sabe usar a criatividade em cada jogada. 

 Ah, ia esquecendo de lembrar que a escova de dentes macia não fere as gengivas.

Publicidade
TAGS:
Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.