A mentira e a fantasia

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Na semana passada, no Clube de Leitura Vivências, organizado por
Márcia Lobosco, quando debatíamos questões emergentes da leitura do livro
Quase Memória, de Carlos Heitor Cony, surgiu um tema que ainda não tinha
parado para refletir: as diferenças entre a mentira e a fantasia.
Estamos situados na realidade concreta, porém a percebemos de modo
subjetivo. A realidade não é tomada tal como é, mas interpretada, o que nos
oferece uma compreensão particular dos fatos. Lembro-me da carta do escritor
ao Mário Prata ao Ministro da Educação no final do século passado, quando
uma crônica sua, As Meninas-Moça, foi utilizada no Vestibular, como prova de
interpretação. Para seu espanto, ele respondeu as oito perguntas e errou
todas! Ou então em Max Weber que afirmou que a realidade pode ser tomada
a partir da vários pontos de vista. A investigação científica tem condições de
desvelar a veracidade dos fatos depois de um processo investigatório intenso,
a partir de critérios definidos e confiáveis.
É importante definir cada uma para ser possível estabelecer uma razoável
diferença entre elas, uma vez que não é fácil entender em que instância nosso
processo reflexivo possa estar situado. A realidade é o que existe. Um
conceito tão simples, todavia polêmico, na medida em que a realidade pode ser
interpretada a partir de desejos pessoais, negações ou transfigurações.
A mentira é uma proposição falsa, enganosa e fraudulenta a respeito dos
fatos. Uma tentativa de convencer outra pessoa a aceitar o que não é
verdadeiro; é fundamentada em interesses pessoais. Segundo ditos populares,
uma só mentira destrói mil verdades e uma mentira repetida várias vezes torna-
se verdade.
A fantasia é construída no imaginário, enquanto capacidade para criar
ideias, fatos e imagens fictícios ou irreais. Como a vida não nos basta e a todo
instante precisamos de algo mais, construímos processos imaginários criativos,
que envolvem idealizações e devaneios. Podemos dizer que o processo de
evolução das civilizações foi decorrente da capacidade criativa humana, e
gostaria de caracterizá-la como a safira do pensamento, enquanto instância em

que a inteligência mergulha na realidade para observá-la, criticá-la e
transformá-la.
No limite entre dois ápices, realidade e fantasia, circula a literatura.
Fernando Pessoa ilustra o caráter da literatura no poema Autopsicografia.

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que ele não tem.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entender a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

A literatura, se mentirosa, demonstra o frágil caráter de quem a produz.
Mas ao transitar entre a fantasia e a realidade construiu as mais dignas obras
literárias como Dom Casmurro, Crime e Castigo, O Pequeno Príncipe, dentre
milhares de outras.
Espero que cada vez mais o espaço entre o real e o imaginário seja
ampliado e não corra o risco de ser diminuído pelos meios virtuais de
comunicação.
Salve Shakespeare, Miguel de Cervantes, Marcel Proust!

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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