Haverá entre a matemática e a literatura um encontro com o divino?

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 06 de fevereiro de 2023

Certa vez, já há alguns bons anos, quando fui à escola Municipal George Pfisterer, no Rio de Janeiro, falar com os alunos sobre um livro meu, conversei com um professor de matemática sobre religião na sala dos professores, que me disse que através da matemática era possível chegar a Deus. Nunca me esqueci dessa afirmação e sempre me pus a refletir a respeito. De todo modo, como educadora e escritora, só posso constatar que tudo o que vivo envolve palavras e números. A meu ver, muito aquém do conhecimento das teorias matemáticas, os cálculos fazem parte dos processos mentais, como a força que devemos colocar nos pés para subir uma escada, digamos assim. Até o ato de consultar as horas envolve o pensamento matemático que está intrincado na cognição de tal maneira que nem percebemos as operações que fazemos, às vezes bem complexas. Se observamos um passe a gol, feito por um jogador de futebol durante uma partida, podemos concluir que o sucesso da jogada depende do pensamento matemático. Quantas equações e cálculos geométricos ele precisa fazer para que seu chute coloque a bola nos pés de outro jogador distante alguns metros?

Lemos, no Clube de Leituras Vivências, o livro “Vidas Sertanejas” de José Huguenin, editado pela Outramargem, em 2021. O autor, pessoa de simplicidade e tranquilidade admirável, é doutor em Física e professor universitário em Volta Redonda. Durante a leitura, eu não parava de me perguntar, como um físico pode adentrar na vida do sertanejo? Ser capaz de narrar com sensibilidade e realismo o sofrimento de quem viveu no sertão nos finais do século XIX. Essa pergunta também cutucou várias amigas do Clube que participavam da conversa com o autor no final da leitura do livro.

Ele nasceu em Cantagalo, terra de Euclides da Cunha e, por esse escritor, foi influenciado. Nosso Brasil tem histórias que nos machucam pela crueldade, injustiça e violência sofrida pelos povos do Norte e Nordeste. A sobrevivência do homem, especialmente com relação às mulheres, idosos e as crianças, surge como uma finalidade primeira para conquistar a dignidade do viver.

Mas, então, como um matemático, estudioso das ciências exatas, consegue tornar-se um escritor com a capacidade para entrar nos bosques da ficção e narrar a História do Brasil, para envolver e tocar um leitor, como eu, que não vive e nunca experimentou a severidade da dor causada pela impiedade de outros e pela aridez da natureza dos sertões brasileiros?

Quem escreve contos, romances, poesias penetra sem timidez nesses bosques, ambiente regido pelo imaginário. Por mais verossimilhança que exista com os fatos, o que se escreve jamais será exatamente tal qual o acontecer porque o texto é irreal por excelência, jamais ultrapassará os limites do papel ou da tela do computador. A literatura está no plano abstrato, e os fatos estão na concreticidade da vida.

Será que quem lida com os números tem a mesma sensibilidade de quem lida com palavras? Será que a exatidão das ciências matemáticas finca os pés do escritor na realidade, de modo a fazê-lo imaginar e criar ficção com fidedignidade aos fatos? Ou será que a matemática é a arte dos números, da mesma forma que a literatura é das palavras?

Ou será que o matemático que se torna escritor quer se encontrar com Deus?

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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