Fátima, o dicionário e os diamantes

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Volta e meia fazemos uma descoberta, sendo a maioria inesperada. Ah, a surpresa sempre nos pega desprevenidos, não é? Algumas nos fazem bem, outras nem tanto. Não quero ser maniqueísta, limitando o entendimento das coisas como boas e ruins, mas buscando compreender a singularidade delas, as características, os valores e possibilidades que oferecem. Também seus desafios e riscos. Toda palavra um tem peso que não se dilui ao vento. 

Como os dicionaristas sabem disso!

Pois bem. Conheci-o na escola, que logo me pareceu um livro chato, daqueles que a gente tinha de procurar palavras não conhecidas. Quem está aprendendo a ler e a escrever tem dificuldades para achar palavras naquelas páginas finas, escritas em letra pequena. Ainda mais complicado era entender o significado delas. Quantas vezes minhas colegas e eu procurávamos uma e mais outra para entender a primeira. Olha que naquela época, para mim, dicionário e castigo poderiam ser sinônimos.

Contudo, um dia notei que havia um jeito bonito de escrever, que uma frase, um bilhete ou mesmo uma poesia poderiam ser escritos de diversas formas. Fiz esta descoberta quando estava em plena adolescência porque tinha uma amiga que escrevia poesias e, ao lado de cada, desenhava algo. Como várias amigas de colégio, resolvi imitar a Fátima. Comprei um caderno e me pus a poetar e a desenhar. Aí, comecei a ter vontade de buscar outras palavras para substituir as que tinha escrito e, assim, sem esperar, estava com o dicionário nas mãos, folheando suas páginas, sentindo, surpreendentemente, o prazer de usar palavras que nunca tinha escutado ou lido. Ou mesmo viajar nos sentidos que cada palavra tinha. O dicionário, naquela época, se tornou uma interessante brincadeira.

Com a coletânea das unidades lexicais da língua portuguesa nas mãos, eu entreabri meus interesses. No final da adolescência já não parava de escrever. Dos diários à poesia, o dicionário se tornou um companheiro, até porque fui percebendo que a cada palavra pesquisada estava diante de um universo de sentidos e ideias. Assim, fui timidamente adentrando o imaginário, dentro do qual poderia permanecer por um longo ou pequeno tempo, porventura por um relampejo de segundo. O dicionário me fez sentir a beleza e o prazer de imaginar, de criar histórias e textos. De escrever.

Subitamente, constatei que habitamos em palavras, ou melhor, as palavras nos preenchem. Ou bem melhor ainda, somos feitos de palavras, a começar pelo nome. Estamos mergulhados num universo civilizatório composto por linguagens; onde todos os gestos, palavras, imagens é transposto ao pensamento, que é construído por palavras e frases. É preciso compreendê-las para entendermos que estamos vivendo, o que muitas vezes não acontece. O dicionário nos é esclarecedor, inclusive nos ajuda a revelar os mais profundos sentimentos, as mais estapafúrdias ideias, muitas geniais. Woody Allen é mestre em engendrá-las no texto e transpô-las à tela do cinema.

A sessão de psicoterapia se desenvolve através da palavra, que nos permite interpretar as imagens dos sonhos, as linguagens corporais, os sentimentos, especialmente aqueles que aparentemente se apresentam como indefinidos. Enfim, a palavra sempre foi o diamante das civilizações. Infelizmente, não é considerada como joia rara, apesar de estar por todas as partes. Quero exaltar a palavra “bem-dita”, a que exatamente expressa a ideia real ou fantasiosa que ilumina a cada instante o pensamento. A que diz o que se pretende dizer. A que mostra o que é preciso mostrar. A verdadeira. A que não ´vulgar.

Para terminar, deixo uma sugestão ao amigo leitor: busque o significado das palavras que, agora, definem você.

Escrevi este texto pensando em tambor, instrumento musical usado em várias culturas. Ora pois, o tambor é cosmopolita! Estou com uma vontade imensa de viajar, de voltar a Amsterdã com minha filha, para nos deitarmos na rua, olharmos para céu e sentirmos a liberdade das nuvens vagarem tarde afora.

Salve o dicionário! 

 

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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