As estranhezas dos novos tempos

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 03 de maio de 2021

Aconteceu algo esta semana que não sei exatamente descrever as impressões que tive, só posso dizer que foram fortes e avassaladoras. O fato foi, para mim, inédito. Mas acredito que para outros seja uma situação vivenciada uma vez ou mais.

Como a pandemia está nos trazendo desafios!

Perdi uma prima de Covid há uma semana, entre a internação e o falecimento foram quinze dias aproximadamente. Era uma pessoa animada, falante, que marcava presença em qualquer situação. Familiares e amigos acompanharam o adoecer dela com preocupação, tristeza e esperança. Mas seu estado de saúde foi se agravando, e seu tempo de vida findou. Ela tinha uma filha, Rafaela, com quem morava. Eram boas companheiras. Enfim. Depois da cremação, Rafaela trouxe a urna com as cinzas da mãe para casa, com a finalidade de aguardar o momento de lançá-las ao vento ao lado de pessoas da família, que moram em outro estado. Pela necessidade de tomar as providências iniciais, esse momento poderá demandar um tempo maior; um mês ou mais.

Confesso que este fato me tocou enormemente, uma vez que, em quinze dias, alguém com quem convivemos e amamos se torna um monte de cinzas guardadas em uma urna, que deve ficar em algum lugar da casa. Que seja num armário, numa cristaleira, numa gaveta. É uma rápida e triste metamorfose que precisamos lidar com sensatez para que a dor não nos adoeça. A vida nos faz tropeçar, entretanto essa situação pode nos ajudar a caminhar com mais equilíbrio.   

Como conviver com isso, se o findar, o momento em que a pessoa deixa de existir, na verdade, não acontece na concretude real? A pessoa, transformada em cinzas, retorna para o lugar onde vivia.

A literatura, como sempre, nos apoia nos momentos em que precisamos vivenciar o luto. Lembrei-me do livro que li de Ana Letícia leal, escrito com sensibilidade A Gente Vai se Separar. A autora externa suas emoções e lembranças nos últimos momentos em que esteve na cabeceira de sua mãe, gravemente enferma. Perder alguém por quem temos amor é um processo sofrido. Em Paula, Isabel Allende escreveu, também ao lado de sua filha Paula, em estado de coma irreversível, uma autobiografia em que a homenageia.

Se a morte acontece repentinamente, o impacto é mais forte, porém a dor não é diferente se houver um tempo de adoecimento.  Contudo, depois de todo o sofrimento, trazer para casa as cinzas de um ente querido, que seja por um, dois ou mais dias é algo indescritível. Ah, nunca me deparei afetivamente com tal circunstância como agora estou.

A médica, especializada em Cuidados Paliativos, Ana Cláudia Quintana Arantes, escreveu o livro A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver: E um Excelente Motivo para se Buscar Um Novo Olhar para a Vida, em que aprofunda as relações entre os modos que a pessoa vive com o processo de findar. O morrer é certo, talvez a única certeza que temos em relação ao nosso futuro. Segundo a autora, o fato de aceitarmos que vamos morrer pode nos remeter à decisão de buscar a plenitude no viver. Aceitar a morte com serenidade torna-nos mais aptos a lidar com o fato de procurarmos um lugar que aconchegue uma urna em casa.  Ou até mesmo decidir que a morte, por ser um efetivo modo de extinção, não cabe ser estendida por qualquer modo, como levar um ente morto, reduzido em cinzas, para casa. Eu me sinto melhor com esta opção.

Ah, como foi bom escrever este texto. Senti-me aliviada por ter conseguido chegar a uma conclusão. Salve a literatura.

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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