Entre guisos, fantasmas e girassóis

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Por incrível que pareça, depois de mais de vinte anos escrevendo textos, livros e colunas, ainda faço oficina literária de escrita para melhorar minhas capacidades de transpor para o papel ideias, sentimentos e esperanças. O escritor é como o pianista, precisa treinar horas por dia, tal qual Gustave Flaubert fazia. Eu tinha uma vizinha, dona Lúcia, que era pianista clássica e tocava do amanhecer ao anoitecer, às vezes, os mesmos acordes de uma música, quando ela buscava a harmonia perfeita entre as notas.

Na penúltima oficina, foi-nos sugerido escrever a respeito dos fantasmas que nos habitam e rondam. Que interessante e repugnante tema! Comecei a pensar nos meus e encontrei medos. Quem não os colecionam? Logo me lembrei de que Freud nos mostrou que somos regidos por uma instância invisivelmente preponderante, o inconsciente. Fiz esforços para adentrá-lo e, tentando, constatei que tenho medo de escrever sobre mim. Eu. Esta pessoa frágil, que usa tantos subterfúgios para fugir das ameaças que existem dentro de si.

Não apresentei texto na oficina seguinte. Aliás, costumo me proteger. Uma nova colega de oficina me espantou ao revelar que o maior abismo que tem é ter saudade de si. Ah! Pensamentos desencontrados, então, ficaram me cutucando na medida em que ia descobrindo o tamanho da saudade que sinto de mim. Inclusive, da estranha saudade de sentir falta das pessoas que guardo no meu inconsciente. Que finjo desconhecer. Ora pois, que não tem ambivalências?

Confesso que me tornei uma pessoa diferente depois que comecei a escrever. Até porque estou em cada frase, em cada palavra, revelando minhas ideias e sentimentos e, até, mesmo mostrando que escondo alguns deles. Estou viva em tudo o que escrevo. Há temas que nunca ousei escrever, como fantasmas porque vou tocar nos meus. Não gosto deles e, por isso, eles me respeitem, talvez. Por ter medo de fantasmas, meus textos sempre trazem a beleza dos girassóis, aquelas flores em forma de sol que iluminam os jardins. Por outro lado, costumo juntar ideias como o cozinheiro faz com os guisos, tão bem aceitos no dia a dia do brasileiro. Aliás o brasileiro gosta de misturar, até porque ele tem em sua essência uma diversidade de povos e cultura.

Mas preciso escrever sobre minhas faltas, lugar em que meus fantasmas habitam. Eu me acostumei a sentir falta, mas não consigo transformá-la em presença e preenchimentos. Vou vivendo, as situações vão passando. Ah, meus girassóis e meus guisos, sempre tão lindos!, vão ficando no tempo e vão me trazendo inspirações.

Agora vou me esforçar para colocar meus fantasmas na posição de abre-alas porque eles estão cansados de pedir passagem. Por certo, serei menos romântica e mais crítica. Será que conseguirei exibir minhas carnes e meus ossos com menos pudor? Nada melhor do que o tempo e as tentativas de ensaio e erro.

Fantasmas amadurecem; sempre nos trazem outras vertentes da sabedoria.

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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