Do filho ao pai

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 08 de novembro de 2021

A relação entre pais e filhos atrai olhares da psicanálise, da sociologia, da
filosofia, da genética. Da literatura. Guimarães Rosa compõe um ponto de vista
psicológico dessa relação no conto “A Terceira Margem do Rio”, contido no livro
“Primeiras estórias”. Muito bem trazida pelas mãos de um escritor que vai quase além
da alma. Com personagens tão imperfeitos quanto os viventes, mostra o esforço de
um filho para compreender a decisão do pai, que ruma seu destino para o rio e vai
navegar numa pequena canoa. Indo e vindo. Tempos a fio. Tão certo da sua escolha,
não titubeia, faz questão de não acenar para a família que se posta nas margens
quando passa, vagando solitário sobre as águas, em completa dependência do clima,
da correnteza, da vida e da morte dos seres que a natureza acolhe naquele lugar.
Se por um ato de liberdade, de solidão, de tristeza ou de ninguém entender os
motivos, aquele homem, chefe de família, vai para além das margens e, sobre as
águas, passa seus dias. Como humano ou fantasma. E ele, como filho e como qualquer
filho, precisa compreender os motivos do pai para conseguir ser ele próprio ou mesmo
para ser o filho daquele estranho pai. Ou até para ser alguém que o pai nunca fora. E
aquele velho homem de barbas e unhas crescidas, burlando as regras máximas da
paternidade, busca o afastamento, o isolamento, a animalização.
Do filho ao pai há uma relação vertical afetiva de baixo para cima. Por mais que
seja insensata a percepção deste mais novo para aquele que está num patamar de
liderança, de ser idealizado e de transmitir padrões de comportamento, o amor filial,
se ferido ou não, permanece como pano de fundo. Os filhos trazem seus pais, com ou
sem zelo, como referenciais de vida. Inconscientemente ou não. É preciso interpretar a
figura paterna.
Ao longo do conto, o filho apela pelo retorno do pai. Um desejo que traça seu
destino. Sem realizá-lo, opta por permanecer na margem do rio apenas para saber
quem é aquele, seu progenitor. Se louco ou não, é o pai que tem, quem o fez e
engendrou-o como gente, de saber fazer isso e aquilo!

Por que um pai, por razões explicáveis ou não, pode deixar de querer seu filho?
Guimarães Rosa não cansa de dizer em suas palavras divinas, nesse intrigante conto,
que os pais podem causar dores nos filhos. E eles, os filhos, podem fazer vidas
esdrúxulas para conseguirem um olhar. Um voltar. Tudo pode ser em vão. Posto que
não existem tantos filhos que fazem vidas sem sentido autêntico, prostrados em
margens? Arqueados em esquinas?
Esse conto é difícil de ler, de entender, de tê-lo nas mãos. Entretanto encontra
consistência em tantas realidades deste mundo perverso. Os pais deveriam lê-lo.
Conversar entre si a respeito. Pensar no significado de ser pai. De ser homem. De ser
mistério.

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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