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As confidências entre o espelho e nós, os refletidos
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
Já disseram que aquilo que não está na Bíblia, está em Shakespeare. Eu
acrescentaria que também está em Guimarães Rosa. No seu conto-crônica, “O
Espelho”, contido no livro “Primeiras Estórias”, editora Nova Fronteira, Rosa revela a
maestria de escritor e filósofo através das reflexões a respeito do que o espelho pode
ou não mostrar a quem se posiciona diante dele. Sua inteligência e domínio da Língua
Portuguesa constroem um texto raro, capaz de desvendar almas. Ah, a alma do
espelho diante de uma pessoa!, que experiências pode proporcionar a este vivente?
Quais mistérios estão contidos numa lâmina de vidro? O espelho nada mais é do
que uma superfície que reflete o raio luminoso numa direção em vez de absorvê-lo ou
espalhá-lo em várias direções. Os raios que partem de vários pontos de um objeto e
incidem sobre seu plano refletor convergem para outros pontos com precisão. Diante
do espelho, a pessoa se vê com notável exatidão.
O espelho reflete o rosto e o corpo, as feições e os trejeitos de uma pessoa. Mas
como será que são percebidos por ela? Que fidelidade pode ter consigo diante da
própria imagem? De acordo com o olhar de quem se observa, o espelho pode mudar
de caráter, ser bom ou ruim, impróprio ou companheiro. Quantos segredos pode
guardar de um rosto? Quantas vezes foi quebrado num ato de fúria? Ou mesmo
beijado. Quem já não sorriu ou chorou ao ver-se numa figura irreal, dotada de
extraordinária verdade?
Olhar-se frente a frente pode ser um desafio, tão difícil quanto estar diante de
uma tribuna inquisidora. O espelho é imparcial e silencioso. Revelador, porém. É
tácito. Não requer interlocutores, nem professores para dizer verdades a quem está se
vendo através dele. Não é falso, sorrateiro ou enganador. Nem tão pouco juiz. Tem
lealdade com a realidade, apenas. A traição, entretanto, está no olhar. Por maior
intenção que tenha para ocultar sentenças, o espelho surpreendentemente deflagra as
resoluções inquestionáveis impostas pela vida. Ai, pode promover a reflexão de
valores e opiniões.
As fraquezas humanas fazem o olhar ficar viciado, vendo o que é conveniente ou
não. Os olhos podem se acostumar com o inverso e com o vazio. Ah, a visão tem
precariedades, deve-se duvidar dela, portanto. Sempre e principalmente diante do
espelho. Por que os animais negam a ver-se no espelho? O espelho reflete a alma de
um ser, vestido por um corpo, e nós, os humanos, não conseguimos ou não queremos
percebê-la. Será que temos medo de notar as deformações que guardamos por trás
das aparências?
Só conseguimos nos ver quando somos visíveis, e o espelho, apenas o espelho,
nos proporciona esse encontro frente a frente. O defrontar-se. Talvez seja arrepiante
permitir o enfrentamento da alma do espelho com a nossa, quando haverá a grande e
autêntica confidência. E o olhar, enfim, poderá se tornar infinito.
“O Espelho”, de Guimarães Rosa, nos espeta com considerações irrefutáveis.
Apenas uma coluna não é suficiente para abordar o que ele nos diz nesse texto divino.
Vou dar continuidade na próxima semana. Bons ventos literários a todos!
Tereza Cristina Malcher Campitelli
Momentos Literários
Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.
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