Estava escrito

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Para pensar:
"Onde me devo abster da moral, deixo de ter poder.”
Johann Goethe

Para refletir:
“Para a política o homem é um meio; para a moral é um fim. A revolução do futuro será o triunfo da moral sobre a política.”
Ernest Renan

Estava escrito

Voltemos os ponteiros do relógio exatas 24 horas.

Momento de fechar a coluna de terça-feira, 25, tratando da previsão de licitação do transporte coletivo, que deveria se concretizar na manhã seguinte, poucas horas após o jornal ter chegado às ruas.

O título da nota seria o habitual “É hoje”.

A dúvida, que consumiu cinco minutos ou mais, era se deveria ou não ser incluída uma interrogação ao fim da frase.

Esperança

Evidentemente a lógica não permitia nutrir qualquer convicção a respeito da efetiva realização da concorrência, mas no fim pesou a sensação de que manifestar tais dúvidas de maneira antecipada poderia, de alguma forma, esvaziar o possível impacto de qualquer desfecho alternativo.

No fim, não fez diferença.

Como a lógica já apontava, não foi desta vez que a situação de nosso transporte coletivo retornou a um ambiente de estabilidade.

Licitação deserta

De forma um tanto previsível, apenas a Faol compareceu à licitação.

E, livre de concorrência, abriu mão de apresentar proposta, de modo que a licitação foi declarada “deserta”.

Licitação deserta, salvo melhor definição, é aquela à qual nenhum proponente interessado comparece, ou na qual não existem interessados. Nessas circunstâncias torna-se dispensável a licitação e a administração pode contratar diretamente, desde que demonstre motivadamente existir prejuízo na realização de uma nova licitação e desde que sejam mantidas todas as condições preestabelecidas em edital.

Estava escrito

E por que a situação era previsível?

Bom, de imediato importa observar o arco cumprido pela relação entre a prestadora do serviço e a prefeitura ao longo do atual mandato, dando a devida atenção à forma como a assombração das vilas marginais ignorou solenemente o prazo para realização da licitação em favor de esforços pela renovação por mais cinco anos de um contrato sabidamente improrrogável, por razões que o leitor está convidado a deduzir.

E notar também a flagrante diferença de tratamento existente antes e depois do fim do contrato.

Quem dá as cartas?

O leitor deve se lembrar, por exemplo, que a prefeitura negou a revisão tarifária prevista em contrato, enquanto tinha poder para exercer este tipo de pressão, fosse pelo motivo que fosse.

E que, após o término do contrato - primeiro durante a vigência do TAC, e agora sob a égide do termo de acordo - o discurso mudou subitamente e a empresa passou a dispor de cenário muito mais favorável na mesa de negociações, simplesmente porque a prefeitura, por sua própria ação, se colocou numa condição de dependência.

Meia verdade

Naturalmente a posição da concessionária não seria tão forte se existisse concorrência de fato entre as empresas deste setor, em lugar de acordos prévios entre as companhias quanto aos mercados que cada uma irá explorar.

Essa, todavia, parece ser apenas parte da verdade, uma vez que não faltam exemplos próximos da atuação de empresas de outros estados em licitações semelhantes, quando o edital se revela verdadeiramente atraente.

E reside aí a grande complexidade desta análise.

Análise responsável

Porque seria fácil insinuar que houve um acordo ou levantar aqui alguma hipótese qualquer ligando algumas das muitas pontas soltas que esta história oferece.

Mas não, precisamos ser responsáveis e isentos aqui.

A questão, como já vimos, é que a concessionária se encontra num momento em que tem grande poder de negociação, e fez uso desse poder para seguir levando adiante seus questionamentos quanto aos termos do edital, tanto no TCE-RJ quanto na Justiça.

Fator pandemia

E que pontos são esses?

Essencialmente, há o argumento de que os termos estabelecidos não poderiam ser cumpridos num cenário de pós-pandemia.

Ainda que ninguém na empresa tenha se manifestado desde a licitação deserta, a coluna se arrisca a listar alguns pontos aqui, baseada em apurações passadas.

Demanda em queda (1)

A bem da verdade, mesmo antes da pandemia já se fazia notar - não apenas em Friburgo, mas no Brasil todo - uma acentuada tendência de queda na demanda, por razões que incluem o fortalecimento da cultura do trabalho em casa, os serviços de delivery, o transporte por aplicativo (e mesmo as lotadas) e o próprio envelhecimento da população.

Alega-se, assim, que ao utilizar como base de cálculo dados de 2018 o edital estaria desatualizado e refletindo um cenário que não irá se concretizar.

Demanda em queda (2)

A pandemia, naturalmente, acentuou drasticamente este quadro.

Até onde a coluna foi capaz de apurar, a demanda municipal quando em bandeira amarela - como no momento em que estas linhas estão sendo escritas - está girando em torno de 55% do que poderia ser considerado um número de viagens normal em tempos anteriores ao novo coronavírus.

E a expectativa é de que mesmo em bandeira verde a demanda permaneça ainda bastante tempo em patamar próximo aos 70% do que era a realidade anterior.

Outros fatores

A coluna entende que outros pontos do edital também motivaram a opção por não apresentar proposta.

Entre eles podemos citar o valor da tarifa em R$ 4,20, quando a empresa insiste que precisa ser de R$ 4,41; a previsão de retorno dos cobradores; a cobrança de taxa de administração de 1%; e a duração do contrato de dez anos, quando a empresa alega que precisaria de ao menos 15 anos para recuperar o investimento e obter lucro.

E, claro, há que se pesar por fim a insegurança jurídica que envolve Nova Friburgo neste momento.

Moral para cobrar

Obviamente estes são os argumentos da empresa, e é evidente que nem todos os seus interesses coincidem com os da população.

Naturalmente, se tudo estivesse se dando sob contrato ou num ambiente moralizado e permeado por concorrências sólidas, muitos destes argumentos teriam de ser (e efetivamente seriam) flexibilizados.

E é justamente por isso que tanta falta faz um poder concedente correto, transparente, comprometido com os interesses coletivos, que tenha estatura moral para estabelecer (e assegurar) patamares justos para a atuação de suas concessionárias.

Como deveria ser

Inclusive porque parte dos interesses da empresa e da coletividade são sim coincidentes.

É interesse de todos, por exemplo, que o serviço se torne mais eficiente, reduzindo tempo de viagem, aumentando o número de pessoas transportadas, e encontrando uma estrutura viária mais segura, livre de retenções e menos desgastante, reduzindo a pressão sobre o valor da tarifa.

E existe ampla margem para uma atuação conjunta neste sentido.

Acostumados a sofrer

O trato com concessionárias não deveria ser, enfim, ponto de tensão para interesses infiltrados, mas aproveitado como um dos terrenos mais férteis para que se possa colher benefícios sensíveis à coletividade.

De fato, a qualidade de vida do friburguense seria outra se pudesse contar com um serviço de transporte coletivo de excelência, pontual e a preço justo, em harmonia com um plano de mobilidade voltado não apenas ao presente, mas ao futuro.

Retrato fiel

Tudo isso, no entanto, parece cada vez mais um sonho distante.

Por que ao contrário, a precariedade que atualmente rege a prestação deste serviço representa o retrato mais nítido daquilo que foi deliberadamente plantado pela atual gestão municipal, não apenas no transporte coletivo, mas em muitas outras frentes também.

E a coluna realmente espera que a Justiça dê o andamento devido às muitas informações que já reúne a respeito do que vem se passando por aqui neste sentido.

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