A praga dos gafanhotos

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 08 de julho de 2020

No meio daquela multidão em disparada, gafanhotos e gafanhotas conseguem se entender

Segundo lemos no livro do Êxodo, o faraó Ramsés II era um sujeito cabeça dura, e a teimosia dele, recusando-se a libertar os judeus, obrigou o Senhor a despejar dez pragas sobre o Egito. Uma das desgraças que desabaram sobre os egípcios foi a nuvem de gafanhotos. Esses bichinhos andam --- ou melhor, voam --- sempre em estado de fome desesperada, de tal modo que podem acabar com uma lavoura enquanto o diabo pisca o olho. E, como sabem os que já estiveram na presença do Dito Cujo, ele, quando pisca o olho, é apenas por um triz, que o diabo não pode perder tempo e permitir que um pecador lhe escape.

Pois o Brasil, que não tem nenhuma culpa pela ranzinzice de nenhum faraó, nem dos de lá nem dos de cá, se viu ameaçado por um bando que, calculam as autoridades, reunia cerca de vinte milhões de esfomeados, zunindo como uma flecha em direção à Pátria Amada. Depois de passar pelo Uruguai e pelo Paraguai, estavam pastando na Argentina. No entanto, essa tríplice visita não foi suficiente para matar a fome da bicharada, ou talvez eles pretendessem vir ao Brasil apenas para saborear sobremesa, o que significaria devorar todas as lavouras que encontrassem pelo caminho.

Um aspecto intrigante do assunto é que os gafanhotos têm vida média de três meses, ou seja, vão morrendo aos montões durante a viagem. E como a população não diminui? perguntará o leitor mais atento. Eis a explicação a que cheguei quando me fiz a mesma pergunta: eles se reproduzem em pleno voo. O que justifica outro espanto do leitor: como é que pode?  Sem ser especialista em gafanhotos, concluo que eles voam transando e transam voando. Por incrível que pareça, no meio daquela multidão em disparada, gafanhotos e gafanhotas conseguem se entender e gerar os herdeiros de sua fome milenar. Dada a velocidade com que viajam, essa deve ser a rapidinha mais rápida de todas.

Verdade que, para os cientistas, as dez pragas narradas na Bíblia têm explicações nada miraculosas. Erupções de vulcões, aquecimento climático, seca e a presença do homem, o mais devorador de todos os bichos, causaram um desequilíbrio ecológico que explicaria o que o povo de então considerou um castigo dos céus.

Qualquer que tenha sido a causa, o certo é que o Egito passou naquela época por um grande aperto, uma verdadeira praga. Mas também o Brasil tem sofrido pragas terríveis, e algumas delas até chegam aos mais altos cargos da República. Nossos gafanhotos só devoram cédulas, preferencialmente das verdinhas. Comem também a moeda nacional, mas logo conseguem plantá-las no terreno fértil de bancos estrangeiros e de paraísos fiscais e depois colhem dólares à mancheia.

Gafanhoto por gafanhoto, talvez os nossos sejam mais vorazes do que seus antepassados bíblicos.

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