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Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Desde criança estava predestinado a inventar outros eus

Fernando Pessoa foi um poeta extraordinário e a palavra extraordinário não tem aqui nenhum sentido hiperbólico. Ao contrário, é a maneira mais contida que se pode falar de seu gênio tão ... extraordinário. Um talento realmente fora do ordinário, fora do comum, ou, como agora se diz – fora da curva. Mas muito, muito para além dos limites da curva. Um homem cuja efervescência poética era tão intensa que não cabia numa só cabeça, numa só pessoa. Aí ele se viu obrigado a criar heterônimos.

Heterônimo não é pseudônimo. Este consiste apenas em escrever por si mesmo e colocar outro nome. Velho recurso de que se valeram desde Nelson Rodrigues (Suzana Flag), até, vejam vocês, um conspícuo general integrante da Junta militar que governou o país em 1969 e publicava versos sob o pseudônimo pouco militar de Adelita. Não era nenhum Drummond, não era nenhum Bandeira, não era Cecília Meireles, mas nem por isso deixou de entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Heterônimo é outro ser, saído das entranhas do seu criador, mas diferente dele e até mesmo oposto a ele. Pessoa não conseguia ser só ele mesmo e deu vida a muitos outros poetas, cada um com história, personalidade, estilo literário, vivências e preocupações não só diferentes, mas às vezes antagônicas entre si e em relação ao próprio autor. Os heterônimos mais conhecidos são Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Mas, já aos seis, ao ganhar da mãe um livro de presente, assinou-o com o nome de Chevalier de Pas. Desde criança estava predestinado a inventar outros eus.

Caieiro “nasceu” em Lisboa, em 16 de abril de1889. De pouca instrução e sem profissão definida, viveu no campo e morreu de tuberculose, em 1915. Sua poesia é marcada pelo bucólico, o simples e sensível diante das coisas do mundo: “Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras .../  Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo”

Ricardo Reis, “nasceu” no Porto, em 19 de setembro de 1887, (quase um ano antes do seu “pai”!) e faleceu em 1936, tendo vivido no Brasil desde 1919. Ao contrário de Caieiro, ‘sua poesia não trata de coisas simples, antes fala da efemeridade da vida e do estoicismo necessário para enfrentá-la. “Para ser grande, sê inteiro: nada/ teu exagera ou exclui. Põe/ quanto és no mínimo que fazes./ Assim em cada lago e lua toda/ brilha porque alta vive”.

O modernista, o futurista, Álvaro de Campos “nasceu”, em Tavira, em 1890. Estudou na Universidade de Glasgow, na Escócia. Era o homem da velocidade, da eletricidade, da vida urbana. Para enfrentar a realidade que o desencantava, tinha uma solução: "E eu vou buscar ao ópio que consola: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do  mundo” (...) O mundo é para quem o nasce para conquistar/E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha razão”.

Mas o principal de Fernando Pessoa é ele mesmo, Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que abriu os olhos para este mundo em 13 de junho de 1888 e para este mundo os fechou em 30 de dezembro de 1935.  Esse homem, que não cabia em si mesmo e transbordava em tantos outros (criou pelo menos 70 heterônimos), em apenas 47 anos compôs muitos dos mais belos poemas da língua portuguesa (e outros tantos em inglês, língua que dominava perfeitamente, desde sua infância na África do Sul).

E foram escritas em inglês as últimas palavras desse poeta cuja obra elevou a língua portuguesa a uma altura raramente igualada: “I not kow what to-morrow (sic) will bring!” E quem sabe? Mas de uma coisa temos certeza; enquanto houver inteligência e sensibilidade neste mundo, o amanhã sempre trará de volta, e com brilho preservado, a poesia de Fernando Pessoa e dos muitos fernandos pessoas que ele criou: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas  ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!/ Valeu a pena?/ Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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