Alarme falso

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo

Estou caminhando quando ouço uma voz que, um tanto tensa, repete duas ou três vezes o meu nome. Volto-me e me deparo com um antigo conhecido que, ao se aproximar de mim, declara estar muito surpreso, mais do que muito surpreso, grandemente espantado por me ver. Não entendo a razão de tanto alvoroço, uma vez que as nossas ruas já estão carecas e esburacadas de tanto que passo por elas.  Mais do que por ter sido professor por longos anos e mais do que por escrever há tanto tempo para jornal, bater rua é o que me faz conhecido. Não popular e nada famoso, mas ao menos muito visto.

Em seguida meu conhecido esclarece por que encontrar figura tão batida na cidade ainda pode causar admiração. “Você nem acredita! Duas pessoas já me disseram que você tinha morrido!” E imediatamente me pede que o acompanhe até o outro lado da rua, onde sua mulher o espera dentro do carro. “Olha quem está aqui!”, diz ele, como quem mostra, ao vivo e a cores, algo que, se contado, passaria por mentira. Apresso-me em pedir a ela que não se assuste, pois, até onde posso julgar, estou vivo (embora essa não seja uma opinião inteiramente isenta). E, aliás, era uma bela manhã de sol, dessas em que até mesmo um defunto ─ envolto na claridade do dia ─ perde muito do que pudesse ter de amedrontador.

Sim, sinto-me razoavelmente vivo, tão vivo quando se pode estar neste mundo em que tudo é tão incerto e inconstante. O casal então me informa que minha viagem para o Além ─ de onde ninguém volta, ou se volta já é outra pessoa ─ é do conhecimento de muitos e já foi comunicada até a filha deles, minha ex-aluna, que hoje mora nos Estados Unidos. Ou seja, minha morte tornara-se assunto internacional. Grande glória!

Não é a primeira vez que me acontece. Há alguns anos faleceu um xará e foi a mesma confusão. O escritor Mark Twain, ao saber que o haviam dado por falecido, comentou “A notícia de minha morte foi um tanto exagerada”.  No meu caso, também. Mas fiquei pensando que um dia (que esteja longe!) ela será verdadeira. E aí não haverá nenhum exagero em dizer que já não sou mais, pois então serei quando muito uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo. E, no entanto, só então serei eterno, como seremos todos, pois permanecerei naqueles para os quais fui um elo, humilde e frágil, na longa caminhada dos homens sobre a Terra.

‘Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”, diz Salomão no Eclesiastes. E acrescenta: “Uma geração vai, e outra vem, mas a terra para sempre permanece”. Quanto mal e quanto erro, quanta dor inútil e quanto inútil desentendimento poderíamos evitar se de vez em quando nos lembrássemos de que somos tão passageiros, menos que uma fagulha na infindável fogueira da vida. Talvez nos sirvam de alerta essas confusões que às vezes acontecem, anunciando a morte de quem ainda ─ e ainda que muito provisoriamente ─ está vivo.

Resta saber o que vem depois. Só existe uma pergunta realmente essencial e é preciso atravessar o umbral para saber a resposta. Bom será se, quando a notícia de nossa morte for verdadeira, já tivermos obtido a resposta, e ela não nos for desfavorável. 

Publicidade
TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.