A importância do ócio na vida das crianças

O acesso às telas e a rapidez das respostas tecnológicas podem levar os pequenos a não saberem usar a criatividade para superar momentos de tédio
sexta-feira, 30 de junho de 2023
por Christiane Coelho (Especial para A VOZ DA SERRA)
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)

Tudo muda ao toque dos dedos. Com uma tela, seja de um tablet, smartphone ou TV, as crianças trocam aquilo que não as está agradando com um simples toque. E, assim, vão se acostumando a ter respostas imediatas ao que as desagrada. Deixam de ter o tédio ou o ócio, que podem ser usados como ferramenta para estimular a criatividade para encontrar caminhos para sair de uma situação que as desagrada. 

“Os excessos presentes na sociedade atual tendem a atuar a favor dos imperativos de felicidade e produtividade, colocando os sujeitos a serviço de um ideal impossível de ser alcançado. Deixar que a criança experimente momentos de ‘tédio’, ou melhor dizendo, o tempo sem o preenchimento em excesso, pode possibilitar o contato com os limites que são indispensáveis para a vida, colocando-as em um lugar de menos suscetibilidade ao sofrimento quando algo vir a faltar”, explica a psicóloga clínica, Nathalya Thurler.

Os filhos da empreendedora Roberta Moreti, Alice, de 9 anos, e Felipe, de 6 anos, não têm aparelhos eletrônicos. “Não somos radicalmente contra. Quando vão à casa de algum amiguinho, eles jogam. Ou jogamos todos juntos. Só não temos na nossa casa, exatamente para estimular que eles usem a criatividade. De vez em quando, liberamos para as crianças fazerem vídeo chamada com os avós, que moram longe ou quando há extrema necessidade, em caso de ficarem doentes. Mas é impressionante como eles ficam mais agitados, ficam mais agressivos, quando negamos o uso das telas depois que têm um contato mais extenso”, relata Roberta.

Reação à estímulos 

Para a psicóloga Nathalya Thurler, é importante considerar que as crianças reagem aos estímulos concedidos a cada época. “Com um simples deslizar de dedos as crianças conseguem mudar a realidade da janela virtual que se encontra a sua frente e ao visualizar o que se anuncia por meio de uma tela ocorre uma submissão advinda de uma urgência, seja por uma informação ou por qualquer outro conteúdo imaginável. O assunto está ali, porém sendo acessado com uma certa pressa ou superficialidade. O tédio, pode ser considerado o tempo para elaboração dos estímulos e esse ‘fazer nada’ parece que aos poucos tem deixado de fazer parte do nosso vocabulário enquanto sociedade e escancarando uma urgência que se dá por meio de uma “verificação vazia” das redes digitais”, explica.

O imediatismo

Roberta conta que nem sempre é fácil lidar com esse imediatismo dos filhos. “É um trabalho diário, cansativo, mas é o único caminho capaz de gerar um resultado eficaz para que Alice e Felipe tenham o emocional fortalecido. Por exemplo, quando vamos a um restaurante com eles, levamos papéis, canetas e lápis de cor. Enquanto esperamos nossos pratos, brincamos de desenhar, colorir, forca… estamos ali com fome, o que gera uma certa irritabilidade. Mas acho fundamental mostrar que há formas de vivenciar aquele momento, que pode até se transformar em estressante, usando a criatividade para que fique leve”, relata a mãe.

Essa experiência contada por Roberta, é cada vez menos comum, seja em restaurantes, salas de espera de consultórios ou qualquer outro lugar em que se tenha que aguardar para ser atendido. A psicóloga Nathalya alerta que “todos nós corremos o risco de ficarmos completamente desconectados com quem está ao nosso redor em virtude do uso excessivo do smartphone, basta comparecer a uma reunião de amigos ou família para observar que a presença física, atualmente, não diz respeito necessariamente a presença psíquica nos ambientes. As crianças estão inseridas nessa realidade e expostas ao acesso de maneira excessiva às informações. O problema se agrava quando a transmissão não é mediada e essa mediação deve se dar na comunicação do adulto. Responder objetivamente se as crianças estão perdendo a capacidade de interação, coloca-as em um lugar de generalização e penso que essa não é a proposta da psicologia face ao trabalho com crianças que deve ser compreendido no caso a caso, então fica a reflexão: Como essa nova maneira de estar junto tem afetado as crianças?”, questiona ela.

Recomendações 

A psicóloga lembra também que em 2020 a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou um manual de recomendações para auxiliar pais, responsáveis, pediatras e educadores a evitar os principais agravos advindos da utilização inadequada das tecnologias digitais. “Nestes são destacados: idade e tempo para a exposição às telas, criação de regras para o uso dos equipamentos, atividades alternativas como prática de esportes ao ar livre e ainda a responsabilidade dos pais e responsáveis no monitoramento do conteúdo acessado pelas crianças e adolescentes diante da vulnerabilidade a conteúdos e práticas violentas”, enumerou a psicóloga.  

Pandemia estimulou o uso das telas

Com o início da pandemia da covid-19 e a necessidade do isolamento social em março de 2020, trabalhos e escolas foram transferidos para as residências e passaram a ser feitos por meio de telas. Se, até então, alguns pais tinham controle sobre o tempo de uso dos aparelhos, com as aulas online, isso passou a ser mais difícil.

“No período pandêmico, as crianças foram submetidas ao isolamento social e a única forma segura de encontros era através dos tablets, notebooks, smartphones. As crianças seguem na linha de frente da demanda contemporânea e afirmar isso é dizer que, reconhecendo que essa é a fase da vida em que os pequenos estão se constituindo, só vamos ter acesso a complexidade do uso excessivo dos eletrônicos futuramente. Porém cabe afirmar, a partir do que se apresenta para nós hoje, que não é sem consequências e que estas podem ser observadas a partir da modificação do que diz respeito à relação com o outro e a inserção”, esclarece Nathalya.

Desmame das telas

Mas, com a reabertura da economia, o retorno às atividades nas escolas e a uma vida com mais rotina, há a possibilidade de voltar a adotar uma relação mais saudável entre as crianças e as telas. E a participação dos pais nessa nova realidade é fundamental. 

“Sabe aquele bom e velho brincar? Ele ocupa um lugar primordial e de extrema importância no desenvolvimento infantil. É a partir das brincadeiras que ocorrem as mais diversas manifestações da criança e a capacidade de criar, fantasiar, simbolizar. Cabe orientar que em um quadro grave de dependência eletrônica, é recomendado que a família busque orientação profissional frente a demanda singular da criança e que a imposição de limites inclui o respeito e a compreensão, em vista do que foi disponibilizado até o momento pelos responsáveis. Outra sugestão seria incluir a criança nas atividades da casa, compreendendo que a demanda excessiva de produção na contemporaneidade também é direcionada aos pais e que a invasão no tempo de lazer pela demanda de trabalho faz os adultos permanecerem também permanentemente online. Porém, considerando os mais diversos modelos e formas de famílias se manterem na sociedade, fica a reflexão: o que é possível fazer com o tempo que sobra para passar com os filhos?”, questiona Nathalya Thurler.

Roberta Moreti tem um exemplo que pode ser aplicado por outros pais “Temos aqui em casa uma caixa de sucatas, com coisas que jogaríamos fora, como rolos de papel higiênico, embalagens. E, quando as crianças vêm me falar: Não tem nada pra fazer. Logo falo: pega a caixa de sucatas. Muitas vezes, batem o pé e querem ver desenhos. Mas insisto na brincadeira feita por eles mesmos e dali saem brinquedos que eles fazem e ficam por horas se divertindo. Uma vez também, eles pegaram várias cadeiras e fizeram um trenzinho. A gaita se transformou no apito do trem. Foi muito divertido”, exemplifica ela.

Férias: sair da rotina de compromissos é importante

Julho é o mês das férias de meio de ano das escolas e essa pode ser uma boa oportunidade para começar a pôr em prática a busca por aprender a se divertir longe das telas. “As crianças estão na maior parte do tempo ocupadas com as demandas escolares, cumprindo horários, regras, rotinas e sendo constantemente avaliadas. Como possibilitar que as crianças aproveitem o tempo livre? A manutenção do contato físico que foi restrito a eles por algum tempo pode ser um dos caminhos a serem pensados, ao promover encontros com outras crianças e oferecer as brincadeiras em conjunto a interação e a criatividade ganham lugar. Atividades manuais com tintas, massa de modelar, argila, pinturas com lápis-de-cor, jogos, contação de histórias, caminhadas ao ar livre, passeios de bicicleta... Estimular atividades que envolvam o corpo e o brincar”, orienta a psicóloga.

As colônias de férias oferecidas por escolas e clubes também podem ser uma boa opção para os pais que precisam estar ausentes por conta do trabalho. Geralmente, são oferecidas atividades esportivas, brincadeira, recreações que estimulam a troca e a convivência.

  • Roberta Ribeiro Moretti, empreendedora no Esquindo Lêlê moda infantil; sua filha Alice, de 9 anos e seu filho Felipe, de 6 anos

    Roberta Ribeiro Moretti, empreendedora no Esquindo Lêlê moda infantil; sua filha Alice, de 9 anos e seu filho Felipe, de 6 anos

  • Nathalya Thurler, psicóloga clínica

    Nathalya Thurler, psicóloga clínica

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