Palco e plateia

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 19 de agosto de 2023

Quando os dias estão depressa demais, desacelere os passos para acelerar o coração. Escolha uma poltrona ao centro e se satisfaça — plateia. Observe, vislumbre, imagine. Sinta a realidade, sem vesti-la. Suspire o que inspira o palco. O artista é de carne e osso. Mas sua alma flutua. Para além do corpo e dos pensamentos — sentimento. Afeta. Deixe-se afetar. De repente, mobilizado permita-se fazer parte de atmosfera até então desconhecida e que só você, no seu singular jeito de ser, poderá descrever. Se é que pode ser descrita. 

Deixe a poesia invadir, esbarrar em você, seja ela de raiva ou paciência, seja ela de ópio ou transcendente. Se o mundo não chama, convoque-se. Plateia. Ao palco, o protagonismo do que sente. Revela. A arte é mesmo misteriosa, ainda que nunca se rogue de enigma. Percepção. 

Mergulhe. Na cena. Nas luzes da ribalta. Passeiam átomos, poeira cósmica e invisível aos olhos — enxerga. Há certa beleza apavorante que alimenta a coragem de render-se à música. Diz: “será que é de louça, será que é de éter, será que é loucura, será que é cenário, a casa da atriz. Se ela mora num arranha-céu. E se as paredes são feitas de giz. E se ela chora num quarto de hotel. E se eu pudesse entrar na sua vida”.

Entre na única vida que te pertence. A sua mesma. Todas as outras, até as imprestáveis, apenas se emprestam a você por alguns momentos. Três minutos ou menos se for esquete. Comédia ou drama. Musical? Quantos atos? Haverá intervalo. Quanto tempo dura uma transa? Em transe. Perguntas não importam. 

Não se mova, ainda que tudo dentro de você se mobilize para a fantasia de um salão de mascarados em Veneza, dos anos 60 da elite carioca ou do baile de favela de uma boate qualquer de Buenos Aires. Ou vá sem ir. A arte é de um mundo onde não há territórios que delimitam espaços, mas céus que nos expandem. Para sambódromos, lonas de circos, guerras de rimas, teatros de mamulengos, para o divino. 

Se as linhas que nos separam em cidades e nações são imaginárias, o artista derruba esses muros pela linguagem universal da dança, do bocejo, do riso largo, da orquestra, da lágrima, do dedo em riste, do peito aberto e do que ele floresce em cordel ou escultura. 

No magnífico espetáculo da vida, todos estão no palco, enquanto plateia. Todos são plateia, enquanto cena. Da coxia dá para ver. O bastidor mais interessante é o burburinho dessa conversa toda que se tem consigo mesmo. 

Que a arte mereça o respeito que a liberdade clama. Que nossas peças teatrais, que contam a história de cada um de nós, não se preocupem com o final, mas se empenhem por meios dignos. Felizes ou tristes, mas intensos, vívidos… Estamos vivos, aprendendo a não andar com os pés no chão.

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Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

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