“Uma pessoa gorda ainda é uma pessoa, com história, sentimentos, dificuldades"

"A nossa régua pessoal não pode ser usada para medir o mundo. Respeitem a individualidade das pessoas”, diz casal orgulhosamente obeso
sábado, 12 de setembro de 2020
por Thiago Lima (thiago@avozdaserra.com.br)*
“Uma pessoa gorda ainda é uma pessoa, com história, sentimentos, dificuldades"

Em uma sociedade onde os padrões de beleza são exacerbadamente impostos, ser julgado pela aparência física acaba sendo algo rotineiro. Porém, quando esse preconceito é prejudicial para o próximo, ele se torna uma violência — mental e/ou física. O Caderno Z convidou o casal Eugênia Oliveira (mais conhecida como Ninna Oli) e Gilberto Monteiro (o Giba) para uma entrevista, com a finalidade de esclarecer o leitor sobre a gordofobia. Confira! 

Caderno Z: Vocês foram crianças gordas? Que lembranças possuem dessa época?

Ninna: Eu nunca fui uma criança gorda. Na realidade eu fui uma mulher padrão 90% da minha vida. Eu engordei depois da minha primeira gestação, seguida de uma crise de depressão que me acompanhou por quase 5 anos. Mas me lembro bem de como os meus coleguinhas gordos eram tratados na escola e em outros ambientes. A repulsa que as pessoas expressavam por crianças fora do padrão já era algo assustador naquela época (sou de 1987). Hoje as coisas ganharam proporções ainda mais alarmantes.

Giba: Sim, eu sempre fui gordo. Mesmo um pouco mais magro que hoje, sempre me entendi como fora do padrão. Ser criança e principalmente adolescente gordo, é um pouco mais difícil que ser adulto. A sociedade está o tempo inteiro te dizendo que você precisa emagrecer para ser saudável e aceito, incluindo familiares e amigos. Porém, quando se é adolescente tem muito mais impacto pois você ainda não tem vivência suficiente pra poder discordar. Muitos acontecimentos da minha adolescência me marcaram negativamente e acabaram dificultando minha vida em diversos aspectos. Tanto em ter relacionamentos saudáveis, me fazendo acreditar que qualquer relacionamento era melhor do que nenhum, quanto em me entender merecedor de direitos básicos.

Ninna, vimos na biografia do seu Instagram a palavra “gordativismo”. O que significa essa expressão?

Ninna: Basicamente, define um movimento que luta pelo acesso de pessoas gordas a direitos básicos no âmbito social. E isso vai além de dizer o que a gente pensa na internet. Antes da pandemia, eu estava envolvida em projetos que visavam levar palestras sobre autoestima e amor próprio para diversos lugares. Para que as pessoas gordas e pessoas fora do padrão pudessem talvez enxergar uma luz no fim do túnel. Acredito que entender que merecemos ser tratados com dignidade é o primeiro pilar da mudança. E independente do que a sociedade diz sobre pessoas gordas, isso não deve ser uma limitação para que alguém receba atendimento médico adequado ou acesso social. Hoje, é uma luta para que alguém que pesa mais de 120kg encontre uma cadeira adequada para trabalho. A sociedade grita em uníssono: "Emagreça! O errado é você!". Mas mesmo que a pessoa ceda a essa súplica, o que ela deve fazer até lá? Como ela trabalha? Como ela paga as contas? E se ela resolve se exercitar, ela busca um espaço especializado (academia) e adivinhem só! O espaço não é adequado a uma pessoa gorda. Que coisa, não?! Percebem a incoerência? O "gordativismo" tem como objetivo sinalizar essas dissonâncias e propor esclarecimento teórico para que haja mudanças estruturais para atender todas as pessoas como elas são. Indivíduos únicos. Não engrenagens de uma grande máquina.

Qual é o significado de gordofobia para vocês?

Ninna: Gordofobia nada mais é do que o preconceito sobre pessoas gordas e a manutenção do estigma sobre esses corpos. É presumir, por exemplo, que alguém tem um problema de saúde só por ser gordo. Isso é uma falácia. Existem pessoas saudáveis e pessoas doentes independente de seus corpos. É preciso, imprescindivelmente, de exames bioquímicos para ter noção mínima de saúde de alguém. A gordofobia está também em presumir que aquela sua amiga gorda nunca vai ficar com ninguém enquanto não emagrecer. 

Está em achar que todo gordo é preguiçoso e desleixado. Em achar que todo gordo é engraçado. É falar pra alguém, que é muito bonita(o) de rosto. É achar que o objetivo de todo gordo é emagrecer. Presumir que todo gordo tem uma alimentação ruim. (Uma pessoa pode ser gorda por vários motivos: biotipo, distúrbios hormonais, fatores psicológicos, distúrbios alimentares etc...). É basicamente resumir a pessoa a um corpo gordo e só.

Giba: Pra mim gordofobia é a forma como a sociedade me vê. Tentando resumir quem eu sou apenas pelo meu corpo e peso. Gordofobia é o médico que me diz que eu tenho que emagrecer sem ver meus exames. É o ônibus onde eu não consigo me sentar de forma confortável mesmo pagando o mesmo que todos. É a academia que me enche de exercícios focados em emagrecimento quando o meu foco é saúde e resistência. É o barzinho que não tem cadeira que suporte meu peso adequadamente. Resumindo, é negar direitos a uma pessoa por ela não estar no padrão que a sociedade considera certo.

O que têm a dizer pra essa galera que sofre com os padrões de beleza impostos pela sociedade?

Ninna & Giba: No final do dia, ninguém paga as suas contas. Faça as coisas por você. A opinião pública é algo volátil. Ser gordo já foi padrão de beleza. É importante lembrar que padrão de beleza tem a ver com poder e muda o tempo todo. Aproveito pra indicar um livro que trata disso: “O mito da beleza”, da Naomi Wolf.

Como o Brasil em relação às adaptações de espaços, como cadeiras mais confortáveis, assentos em aviões, cinemas? Aqui na cidade, já passaram por alguma situação desagradável?

Ninna & Giba: O país está ZERO adaptado a pessoas gordas. Os espaços não são pensados nem para brasileiros que não são gordos, o que dirá para nós! Os espaços estão cada vez menores e restritos. Tudo é projetado pensando em lucrar mais. Mais assentos no avião, mais dinheiro no bolso das empresas. E isso francamente é igual em todos os lugares do mundo. Não é uma exclusividade do Brasil. Mas não deixa de ser vergonhoso. 

As cadeiras são projetadas pensando SEMPRE no peso máximo de 120kg. Se você pesa mais que isso, problema seu. Minha prima que trabalha com desenho industrial e arquitetura, me confessou recentemente que isso inclusive é algo reforçado nas universidades. Os próprios acadêmicos desencorajam os alunos a projetar para mais de 120kg.

E sim, já não ando mais de ônibus porque as catracas não contemplam a gente e muitos motoristas de ônibus daqui não permitem que entremos pela porta dos fundos. Alguns exigem que a gente entre pela frente e sente naquele micro banco individual que não cabe quase ninguém. Em contrapartida, o cinema do Cadima Shopping é o único que possui assentos "plus" que atendem confortavelmente.

E as marcas brasileiras que se dizem plus size? É plus size mesmo? Há mais opções para homens ou para mulheres?

Ninna & Giba: Nem sempre. Às vezes sim, às vezes não. Mas porque também existe uma confusão no mercado. As pessoas ainda não entenderam que moda plus size é um nome "bonito" para roupas para pessoas gordas. As marcas pisam em ovos porque, ou têm medo de se dirigir a pessoas gordas ou têm preconceito com corpos gordos. E acabam caindo no erro de achar que o seguro é fazer até o tamanho 52. E acabam excluindo e colaborando para o apagamento da existências de pessoas gordas maiores. Que ainda querem se vestir bem e ter uma vida social. Os consumidores de roupa "plus size" não sabem bem onde encontrar roupas. Mas já existe um mercado independente incrível que produz moda até o tamanho 70.

E para mulheres o acesso a roupas legais ainda é infinitamente maior do que para homens. Principalmente quando falamos de gordos maiores (que normalmente vestem acima do 58). Achar roupa, eles até acham. Mas é tudo meio qualquer coisa. É como se as pessoas não pudessem ter estilo. Espera-se que todo homem gordo se vista igual. As opções são bastante limitadas.

Com a popularização da internet, muitas pessoas ganharam voz e debatem assuntos importantes. Em quem vocês se inspiram?

Ninna: Eu me inspiro em amigos mais próximos. Eu acredito que toda essa popularização também deu voz pra muitas pessoas que abordam assuntos sérios de forma totalmente superficial e sem embasamento. E isso acaba distorcendo realidades e impedindo que a gente faça mudanças tangíveis para as pessoas gordas, no cenário social. As pessoas que eu sigo hoje e valem o follow no instagram são: @daveavigdor @jessicando_ @mairacomacento @saudegg. 

Giba: Eu mal acesso a internet. Tenho poucas referências... então acabo acompanhando mesmo é o conteúdo da Ninna.

Que recado vocês mandam para a sociedade?

Ninna & Giba: Uma pessoa gorda ainda é uma pessoa. Com história, sentimentos, dificuldades, amores, erros e acertos. A nossa régua pessoal não pode ser usada para medir o mundo. Respeitem a individualidade das pessoas. A saúde do outro, é problema do outro. Se a saúde do outro é uma preocupação pra você, se junte a nós na luta para que todos tenham atendimento médico adequado. Para que todos os equipamentos oferecidos em academias comportem um corpo gordo maior. Para que os nutricionistas e médicos em geral não sejam gordofóbicos e tratem a saúde antes da aparência. Ser tratado com dignidade é um direito humano. E por último mas não menos importante, sua opinião é um direito que te assiste. Mas se ela não foi solicitada, guarde pra você. Saúde mental também é saúde.

 

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TAGS: saúde