O velho casarão de nossas vidas

O fogo só não destruiu a memória e a saudade. A dor arde em todo coração friburguense num sábado de cinzas
segunda-feira, 03 de junho de 2024
por Giovanni Faria*
Giovanni Faria (Foto: Acervo Pessoal)
Giovanni Faria (Foto: Acervo Pessoal)

O dia era 6 de maio de 1975. Eu tinha acabado de completar 15 anos.
 
No meu primeiro dia como estafeta na Fábrica de Rendas Arp, o jovem que me “passava o serviço” me mostrou o caminho da confecção de bordados, da rebordagem, da tinturaria, do almoxarifado, do escritório e da sala do “chefão”, doutor Richard Ihns.
 
Em seguida, disse-me: “Agora você vai conhecer a jóia da coroa...”
 
Subi as escadas do casarão admirando a arquitetura. Naquela época, sonhava ser arquiteto – fazia até um curso de desenho. Assim que cruzamos os impecáveis jardins, ele sentenciou.
 
“Antes de entrar, nunca esqueça de limpar os pés no tapete!”
 
Nunca esqueceria.
 
Ali funcionava os setores médico e odontológico da Fábrica de Rendas Arp. A secretária, uma senhora alta, elegante, de feições alemãs, era rigorosa, não permitia barulho. Eu entrava na ponta dos pés, entregava a correspondência – em geral, revistas especializadas. Eu era estafeta, denominação que depois seria substituída por office-boy.
 
O casarão, pé direito alto, chão frio e encerado, madeira e vidro em equilíbrio perfeito, era o lugar que mais gostava na fábrica. Quando havia correspondência para ser entregue ali – não era sempre - meu dia estava ganho. Ia feito um pé de vento.
 
A vida desceu a serra. Mas toda vez que ia à terra natal, a caminho do Cônego de minha mãe, admirava e contava com orgulho para meus filhos que trabalhara ali.
 
Ao saber da notícia do incêndio, minha mãe, Shirley Thurler de Faria, de 86 anos, chorou. Repetia, como canto de ave: “Aquela casa é a minha paixão de vida!”
 
Depois, virou restaurante. O prato que me atraía ali ficava, na verdade, nas paredes austeras do casarão: fotos de meu saudoso pai, Francisco Pinto de Faria, o Chiquinho, que trabalhou duas décadas na empresa, mais especificamente no escritório, mas que virava garçom nas festas dos funcionários. E assim ele aparecia nas fotos que tanto admirávamos.
 
O fogo só não destruiu a memória e a saudade. A dor arde em todo coração friburguense num sábado de cinzas.

*Giovanni Faria é friburguense e jornalista

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