O homem que alugava sonhos

Uma crônica sobre Guinga, dono da locadora Disk Vídeo, que por vinte e cinco anos desenhou o arco dramático de sua jornada junto ao cinema
sábado, 05 de setembro de 2020
por Alan Andrade (alan@avozdaserra.com.br)

De repente, num domingo de uns dois anos atrás, quando acabava de me mudar para cá, descobri que aqui na cidade, perto do Jornal onde eu comecei a trabalhar, ainda havia uma locadora de filmes – que nos Tempos modernos são uma resistência às Invasões bárbaras de gigantes do streaming como Netflix e Amazon. E ao atravessar aquele portal, descobri ainda que aquele era Um lugar para os amantes do cinema, onde clássicos (raros de se achar) dividiam espaço com filmes de diretores aclamados pela crítica, como Fellini, Truffaut, Bergman e Buñuel, que abarrotavam as prateleiras com o que existia de mais sublime na sétima arte.

Enquanto aguardava a saída de um cliente mal-educado, que regurgitou as frustrações de sua Doce vida sobre o balcão, ouvi o dono da locadora, Um homem sério, me dizer que levou anos para aprender que o cliente nem sempre tem razão. Aquele foi meu primeiro contato com Guinga, protagonista de uma cena que me remeteu de imediato a Um conto chinês – cena que ele relembrou em nosso último encontro. 

Ao longo desses dois anos, me juntei aos sessenta mil clientes que alugavam ali todo tipo de filme, dos comerciais aos mais conceituais, Cada um com seu cinema. A Obsessão típica de um cinéfilo me levou além de uma Viagem à lua, mas a uma Odisseia no espaço. E o Guinga era uma espécie de condutor, um Adorável professor que “alugava sonhos”, como disse certa vez um Cidadão ilustre

E seu Império dos sonhos foi erguido ali na Rua Portugal em 1995, ao lado de sua então esposa, Marcia, de quem levou inúmeros e discretos pontapés no calcanhar quando ele perdia a paciência com algum cliente chato, especialmente se estivesse em Um dia de cão. Nestas horas, ela segurava A fúria de Guinga com um simples pedido ao cliente: “Rebobine, por favor”.

A idade do ouro para a Disk Vídeo veio junto com o Titanic – e parecia que nada seria capaz de afundá-la, nem mesmo a tragédia de 2011, que condenou inúmeras e irrecuperáveis obras raras em seu lamaçal. Juntos, Os sonhadores enfrentaram com Bravura indômita todos os icebergs que despontam na vida. Nunca permitiram que A sombra de uma dúvida ofuscasse as Luzes da cidade. Afinal, ouvi do próprio Guinga A confissão de que quando há Paixão pelo que se faz, Tudo vai bem. Contudo, O homem que sabia demais de filmes, também sabia que Vida fácil só existe em Hitchcock, e que um ponto de virada sempre é esperado no arco de uma boa trama – e que a descida ao Abismo de um sonho em algum momento seria inevitável. 

A crise provocada pela Epidemia do coronavírus, neste fatídico ano de 2020, culminou em um Estado de sítio, abalando com um Grande golpe a estrutura dos comerciantes da cidade – em especial os pequenos, os esquecidos em meio ao Discreto charme da burguesia. Numa Terra em transe, Onde os fracos não têm vez e onde O poderoso chefão e O capital ditam A regra do jogo, O abrigo de Guinga, que no dia 7 de dezembro completaria 25 anos de história, foi acossado até fechar suas portas. A igualdade é branca, não roxa. 

Nesta segunda passada, fui com o Henrique Pinheiro gravar uma matéria com o Guinga, uma espécie de homenagem por toda a sua trajetória. O silêncio daquela locadora carregava o ar de melancolia, especialmente quando vi Tudo à venda. Não se ouvia naquele momento aquela gargalhada contagiante da Ana Paula, que ecoava até o Califórnia. Ao final da gravação, o sentimento que se revelou Através de um espelho pelo qual Guinga contemplava toda a sua história, era o de dever cumprido.

NOTA: Para quem curte um bom filme, deixei aqui várias sugestões. Infelizmente para mim e para todos os amantes do cinema, boa parte deles já não pode mais ser encontrada. 

 

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TAGS: Cinema