Erguendo uma catedral

Em maio, Nova Friburgo celebrou o bicentenário da imigração alemã no município
sexta-feira, 31 de maio de 2024
por Robério José Canto*
(Foto: Freepik)
(Foto: Freepik)

Duzentos anos são passados desde que o “Argus” e o “Caroline” foram lançados ao mar, com destino ao Brasil. É hora de comemorarmos este acontecimento verdadeiramente histórico, e histórico não apenas para nossa cidade, mas para toda a região circunvizinha, e mesmo para o Brasil. E comemorar no sentido original da palavra: memorar com, memorar juntos. Convido os leitores, pois, a que juntos memoremos um pouco da verdadeira epopeia em que se constituiu a fundação, a colonização e o desenvolvimento destas Terras do Morro Queimado.

Lembremo-nos da situação em que, no início do século XIX, se encontrava a região hoje ocupada pela Alemanha e pelos países vizinhos. Tão difíceis eram as condições de vida que houve quem, pedindo autorização para emigrar, apresentasse o considerável argumento de que melhor era arriscar-se em terra estranha do que, na terra natal, morrer à míngua. Vieram, pois, impulsionados por aquela esperança que é das mais fundamentais das esperanças humanas: a de buscar para si e para seus descendentes condições dignas de estar em si e de estar no mundo.

Nestes tempos em que a ciência e a tecnologia transformaram o planeta na pequena aldeia global prevista por Mc Luhan, talvez nos seja difícil imaginar o que, para a gente daquela época e daquele lugar, significava a exótica palavra Brasil. Era, por certo, mito e assombro, medo e desafio. Era a perigosa aventura de afrontar o desconhecido, mergulhando no diferente, no inconcebível. 

Apesar disso, naquele distante 19 de julho de 1823, os primeiros alemães destinados ao Brasil lançaram-se ao mar. Repetindo o lema de antigos marinheiros, Fernando Pessoa nos diz que “navegar é preciso, viver não é preciso”. No entanto, aqueles homens e mulheres navegaram porque já não tinham escolha: sobreviver era preciso.

Iam para a Bahia, segundo consta dos livros. Mas, embora muito saibamos dos fatos, pouco sabemos dos fados que sopraram a favor de Nova Friburgo, desviando-os para cá. Aqui chegaram, em 3 de maio de 1824, trazendo consigo aquelas qualidades que, desde sempre, parecem tão próprias do povo alemão: amor ao trabalho, persistência na luta, coragem na adversidade.

Tempos e sofrimentos mais tarde, a Vila de Nova Friburgo abria-se, enfim, diante deles. Pequena vila, em terras que, seis anos antes, “os suíços ousaram varar”. Por conta dos logros em que tinham caído e da inadequação do solo às suas atividades agrícolas, bem longe andavam os suíços dos sonhos de prosperidade que os tinham trazido. A vila de Nova Friburgo mais se assemelhava então a um casebre que, à beira da montanha, ameaça despencar.

Lúcio Costa, falando dos candangos que construíram Brasília, disse que eles foram os baldrames, as vigas de sustentação daquela obra espantosa. O mesmo se pode dizer dos alemães, em relação a Nova Friburgo.  Eles injetaram na vila ânimo novo, deram a ela um impulso decisivo, sem o qual talvez aquele humilde casebre tivesse desmoronado na próxima temporada de chuvas. Se temos motivos para chamar nossa cidade de Suíça Brasileira, creio que não nos afastaremos da verdade histórica se dissermos que Nova Friburgo é também, e com igual razão, um pedaço da Alemanha no Brasil, um recanto germânico nos trópicos.

Orgulhamo-nos desse passado, orgulhamo-nos de nossa ligação com essa Alemanha que hoje, pelo vigor de suas forças produtivas, pela solidez de sua democracia, por sua prática de respeito aos direitos humanos, constitui-se numa das mais expressivas lideranças políticas, econômicas e morais da Europa e do mundo. Orgulhamo-nos do nosso parentesco com a Alemanha de tantos grandes nomes, para sempre inscritos nas mais gloriosas páginas da história da humanidade.

Bastava que os 334 pioneiros tivessem feito o que fizeram por estas terras do Sertão de Cantagalo para que merecessem para sempre nossa gratidão e nossas homenagens. Mas, ainda num segundo momento, a partir de 1911, vieram eles dar um novo impulso à nossa terra, transformando-a num verdadeiro parque industrial. Julius Arp, Richard Ihns, Maximilian Falck, Emil Cleff, Hans Gaiser e Frederick Sichel, dentre outros, são nomes que, por si sós, contam a história da industrialização de Nova Friburgo.

Esses homens, com seus recursos financeiros e sua experiência administrativa, aqui encontraram um povo trabalhador, inteligente e acolhedor. Se é verdade que nossa gente muito deve a tais empresários, não é pouco também o que eles têm a agradecer ao trabalhador friburguense. Pois foi o povo de Nova Friburgo que, com seu trabalho, não raro com seu sacrifício, tornou possível a vitoriosa empreitada industrial dos alemães em Nova Friburgo.

Por outro lado, ao prestarmos justas homenagens aos alemães, não nos esqueçamos de tantos outros povos sem os quais o “jardim suspenso no alto erguido” de J. G. de Araújo Jorge não teria germinado. Registremos, portanto, uma palavra de igual gratidão aos portugueses, suíços, espanhóis, italianos, japoneses, austríacos, libaneses, húngaros e tantos outros que ajudaram a fazer de nossa cidade o que hoje ela é. Registremos, ainda mais, uma palavra de igual gratidão aos povos africanos, que, no verdadeiro sentido da expressão, regaram este solo com sangue, suor e lágrimas.

Em seu livro “O começo do protestantismo no Brasil”, o pastor Armindo Müller afirma que a fundação de Nova Friburgo é uma história de enganos, numerosas que foram as trapaças e os equívocos cometidos nessa trajetória.  Sim, história de enganos. Mas um só acerto de Deus é maior do que todos os enganos dos homens. E aí está, graças aos erros e acertos dos católicos e dos luteranos, dos crentes de todas as demais denominações religiosas, e mesmo dos ateus (pois é sabido que Deus não acredita na existência de ateus), esta que é, verdadeiramente, “parada de um caminho a caminho do céu”, na feliz definição do poeta.

Tudo isso constitui para nós uma grande lição. Mas talvez a maior lição seja ainda outra. O que de melhor nos ensina o processo de colonização e desenvolvimento de Nova Friburgo é o quanto podem os povos quando se unem na realização de uma obra comum. Quando pessoas das mais diferentes raças, nacionalidades e religiões, divergências e convergências são capazes de se dar as mãos, tornam-se também capazes de construir a realidade com que sonham, tornam-se capazes até de construir uma Nova Friburgo.

É bem conhecida a história dos três pedreiros que trabalhavam numa construção. Perguntaram ao primeiro deles: “O que você está fazendo?”, e ele respondeu que assentava tijolos, resposta admirável, pois é nobre a tarefa de assentar tijolos. Perguntaram ao segundo: “O que você está fazendo?”, e ele respondeu que ganhava o sustento da família, resposta admirável, pois é nobre a tarefa de ganhar o sustento da família. Perguntaram ao terceiro: “O que você está fazendo?”, e ele respondeu, levantando os braços e os olhos, como se já a visse pronta: “Estou erguendo uma catedral!”, resposta sobre todas admirável, pois é nobilíssima a tarefa de realizar obras que permaneçam para o futuro.

Nossos antepassados, com maior ou menor consciência disso, estavam erguendo uma catedral, a catedral chamada Nova Friburgo. Cabe a nós, os que hoje a habitamos, cuidar dela, para entregá-la aos nossos descendentes cada vez mais bela e vigorosa, democrática e fraterna.

Que tanto nos ajude o Senhor da Cidade Eterna, Aquele que é o Deus único de todos os lugares, de todos os tempos e de todos os povos.

*Robério Canto é escritor, professor e membro da Academia Friburguense de Letras

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