Em tempos complexos como os vividos por ocasião da pandemia provocada pelo novo coronavírus no mundo inteiro, é inegável que os impactos nas mais diversas ordens são imensuráveis. No campo do Direito, estamos atravessando vários questionamentos e transformações e as discussões jurídicas não são poucas.
No âmbito do Direito do Trabalho, os efeitos do cenário atual são ainda mais gritantes, pois as necessidades recentes de afastamento social afetam diretamente o contexto das relações de trabalho tradicionais. Com isso, muitos empregadores e empregados estão enfrentando severas dificuldades sobre como lidar com a realidade imposta pela crise, salvaguardando-se em bases jurídicas e tentando literalmente sobreviver e encontrar fôlego financeiro para manutenção das relações de trabalho.
Diante da complexidade do cenário, vamos esclarecer alguns pontos de suma importância para as partes envolvidas, deixando claro que cada caso concreto merece uma análise quanto às suas particularidades e que estamos frente a muitas questões ainda sem gabarito.
Medidas Provisórias em matéria trabalhista
A Medida Provisória (MP) é um instrumento com força normativa exarado pelo Presidente da República, nas hipóteses permitidas pela Constituição Federal, em casos de urgência e relevância. A produção dos efeitos jurídicos de uma MP se dá de forma imediata, em caráter temporário, podendo ter vigência máxima de cento e vinte dias, dependendo de procedimento legislativo com tramitação própria no Congresso Nacional e posterior sanção do chefe do Poder Executivo para eventual conversão em lei.
Nos meses de março e abril, por força da pandemia, já foram editadas inúmeras medidas provisórias e, dentre elas, algumas afetas às relações laborais, a exemplo das MPs 927, 928, 936, 944 e 945/2020.
Muito se tem questionado sobre os efeitos práticos da sistemática posta para o cenário atual, visto que as medidas dispuseram sobre o regime de trabalho em home office, teletrabalho, direito a férias, regras próprias para profissionais de saúde, imposição do estado de calamidade púbica e estado de força maior, aproveitamento e antecipação dos feriados, diferimento do recolhimento e possibilidade se saque de fundo de garantia, banco de horas, flexibilização na forma de composição das negociações coletivas, suspensão do contrato de trabalho, possibilidade de redução de salário com respectiva redução de jornada de trabalho, nos termos da lei, entre outras.
Ou seja, nos deparamos com muitas mudanças e um cenário novo e complexo até mesmo para os operadores do Direito do Trabalho. Junto com as medidas, já temos discussões acirradas sobre a (in) constitucionalidade de algumas das normas promulgadas e por isso mesmo, o Supremo Tribunal Federal (STF) já vem enfrentando os questionamentos e se manifestando por meio de decisões em sede de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI).
Convivem com essas normas de efeitos no trabalho, tantas outras, inclusive as que recomendam o afastamento social, proíbem abertura de comércio, etc, como no caso dos decretos estaduais e municipais em atendimento às recomendações da Organização Mundial de Saúde e outros órgãos que vêm atuando na tentativa de minimizar os efeitos da Covid-19.
Independente das análises jurídicas que estão ganhando corpo e que certamente trarão consequências futuras ainda incertas, os empregadores e empregados estão buscando entender os caminhos que se apresentam sobretudo durante a pandemia. A dúvida que paira perante muitas empresas é: como conciliar a necessidade de afastar os trabalhadores durante a pandemia , a repercussão financeira negativa muitas vezes ditada pelos freios de consumo em alguns setores a impossibilidade de funcionamento de estabelecimentos que não atuem nos chamados serviços essenciais e a manutenção do emprego. Em relação aos empregados, o grande receio é justamente a necessidade de manter a renda mínima para subsistência própria e de sua família e ao mesmo tempo resguardar sua saúde e sua vida. Não há respostas prontas a essas questões. Da mesma forma, entendo que não é possível generalizar.
O cenário é deveras complexo. Há algumas alternativas. Esclareceremos a seguir algumas alterações propostas pelas referidas medidas provisórias hoje em vigor que vêm sendo alvos de dúvidas frequentes, nos abstendo, por ora, da emissão de um juízo de valor a respeito de suas balizas legais e constitucionais.
Férias
Há uma série de alterações às regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) durante o estado de calamidade. De acordo com a Medida Provisória 927/2020, é possível que o empregador antecipe as férias de forma unilateral, ainda que o período aquisitivo a elas não tenha transcorrido, devendo informar ao empregado com antecedência de pelo menos quarenta e oito horas, admitindo-se inclusive, a comunicação por meio eletrônico, com a respectiva indicação do período de gozo de férias. Permite-se o fracionamento do mesmo, desde que os períodos não sejam inferiores a cinco dias corridos. Serão prioridades, tanto nas férias individuais quanto nas coletivas, os trabalhadores que pertençam ao grupo de risco do coronavírus. Ademais, durante referido período, o empregador poderá suspender férias ou licenças não remuneradas dos profissionais de saúde.
No caso de optar pela concessão de férias, o empregador poderá efetuar o pagamento do adicional de um terço de férias mesmo após a sua concessão, até a data em que é devida o décimo terceiro salário. Além disso, durante o estado de calamidade pública, o próprio pagamento da remuneração de férias não precisará ser efetuado com dois dias de antecedência conforme preconiza a CLT, podendo ser pago até o quinto dia útil do mês seguinte.
No tocante às férias coletivas, também tivemos novidade. O empregador poderá, a seu critério, concedê-las, notificando os trabalhadores afetados com antecedência de, no mínimo, quarenta e oito horas.
Teletrabalho
O teletrabalho pode ser definido como o trabalho preponderantemente remoto ou à distância, com o incremento da utilização de tecnologias de informação e comunicação, desde que, por sua natureza, não se configure trabalho externo.
Essa tem sido a solução para muitas empresas e trabalhadores, visto que possibilita-se a manutenção do emprego, com a prestação dos serviços e correspondente remuneração, tudo isso aliado ao cumprimento das normas e recomendações de afastamento social.
Tem-se permitido, com base na MP 927/2020 que o empregador, a seu critério, estipule o regime de teletrabalho e também o retorno ao regime presencial, independentemente de acordos individuais ou coletivos, bastando a comunicação ao empregado por meio escrito ou eletrônico, com antecedência mínima de quarenta e oito horas. O exposto aplica-se, neste momento, além dos empregados, aos estagiários e aprendizes.
Suspensão do Contrato de Trabalho
A MP 936/2020 trata do denominado programa emergencial de manutenção do emprego e renda, e propõe, entre outras medidas, a possibilidade de suspensão temporária do contrato de trabalho por até sessenta dias, durante o período de estado de calamidade pública.
A medida traz regras próprias que, embora questionáveis por vários operadores do Direito, estão sendo chanceladas e aplicadas.
A suspensão temporária será pactuada por escrito entre as partes da relação de trabalho, conforme os critérios estabelecidos pela MP 936, sendo certo que embora impactado durante o período, o empregado com contrato de trabalho temporariamente suspenso deverá ter preservados os seus benefícios trabalhistas. Neste interim, fica vedada a prestação de serviços pelo empregado em favor do empregador durante o regime e o empregado terá o respaldo de uma estabilidade provisória no emprego durante o período da suspensão e igual período após o retorno às atividades. Enquanto isso, a contrapartida estatal se dará pelo incremento do chamado benefício emergencial de prestação mensal devido a partir da data do início da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho, observadas as diretrizes estipuladas na respectiva medida provisória.
Redução de Salário com Redução de Jornada de Trabalho
Outra hipótese permitida pela MP 936/2020 para o período do estado de calamidade consiste no acordo para redução proporcional da jornada de trabalho e de salário dos empregados por até 90 dias, preservado o valor do salário-hora de trabalho e respeitados os percentuais de 25%, 50% ou 70%, conforme as especificidades apontadas na mesma norma.
Fato é que essa alternativa vem sendo muito criticada, por confrontar um direito social do trabalhador esculpido na Constituição Federal que é a irredutibilidade salarial, salvo mediante convenção coletiva. Tanto é que temos em curso uma ação tramitando no Supremo Tribunal Federal que traz à tona essa discussão a respeito dos impactos nos salários do trabalhadores em tempos de crise.
Com isso , as alternativas que comumente vêm sendo aplicadas durante a pandemia quando se visa manter o vínculo empregatício, tem sido justamente oportunizar o trabalho de forma remota, conceder ou antecipar períodos de férias, suspender contratos de forma temporária ou mesmo pactuar flexibilização salarial com redução de jornada.
Devo ressaltar que quando se tratam de profissionais de saúde ou dos serviços essenciais ou mesmo de trabalhadores doentes ou que compõem grupo de risco da COVID-19, há outros cenários possíveis. A realidade exposta não é aplicável para os servidores públicos. Ouso dizer que estamos diante de uma crise que impõe perdas e inseguranças a todos. Acredito que uma importante forma de solução dos conflitos que se apresentam é o diálogo entre as partes, a orientação jurídica e a busca pelo equilíbrio, sem ignorar jamais que temos um ordenamento jurídico consolidado que deve ser respeitado, visando, inclusive, evitar litígios futuros e tendo por base a dignidade da pessoa humana, a preconização do direito à saúde e às vidas de todas as pessoas neste momento de risco social aviltante.
* Paula Farsoun é advogada e professora de direito do trabalho e processual do trabalho e assina a coluna semanal “Com a palavra” às sextas-feiras. Instagram @paula.farsoun
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