Câmara Cascudo e o folclore como ciência do povo

O autor compartilhou com Mário de Andrade saberes que influenciaram diretamente a criação da obra “Macunaíma”
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Divulgação/Turismo do Maranhão)
(Foto: Divulgação/Turismo do Maranhão)

Câmara Cascudo (1898-1986) escrevia à noite. Nas horas em que o urutau cantava e os lobisomens vagueavam, o pesquisador se retirava para um quarto em sua casa em Natal (RN) e punha-se a escrever sobre a cultura popular brasileira — não só a que devorava avidamente nos livros, mas também a que ouvia da rendeira e do pescador com quem conversara por toda tarde.

Autor de obras ímpares como o Dicionário do Folclore Brasileiro (1954) ou a História da Alimentação no Brasil (1967/1968), Luís da Câmara Cascudo nasceu e viveu na capital potiguar. Formou-se em direito, financiou-se a maior parte da vida como professor. Mas foi na documentação e no apreço pelas pessoas, hábitos e culturas brasileiras onde Cascudo debruçou sua infindável memória e prolífica capacidade de escrita.

“Ele foi um dos precursores da pesquisa de campo no Brasil, a picada do mato, como ele gostava de dizer”, conta Daliana Cascudo Roberti Leite, neta do escritor e presidente do Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, espaço que resguarda e promove o acervo do pesquisador, que funciona na casa onde ele sempre morou. 

Para o pesquisador Marcos Antonio de Moraes, professor de literatura brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Câmara Cascudo reconhecia no folclore brasileiro a manifestação mais rica e viva do condensado de culturas que formam o país.

“Folclore é uma expressão que intelectuais como Câmara Cascudo valorizaram muito, porque sempre a pensaram como uma ciência do povo, ciência que pudesse fornecer as bases, as camadas daquilo que nós expressamos enquanto o que nos diferencia dos outros. Somos resultados desse processo que não é puro, oriundo de várias fontes que se mesclaram e passaram por adaptações do meio.”

Para o “homem-dicionário”, a pesquisa e o compartilhamento dela ajudavam a entender e proteger as culturas populares. Essa pesquisa, entretanto, não era somente erudita. O que ele queria saber não estava confinado aos livros que lia e escrevia. Era preciso cruzar a soleira da porta, atravessar o quintal, ver a vida girar.

“Quando Cascudo começou a estudá-las, coisas consideradas do povo eram de menos valia. Não eram dignas de um olhar acadêmico, de um debruçar estudioso. Mesmo assim, meu avô fez e foi pioneiro. Foi ao mangue, escreveu um livro sobre jangada, entrevistou quem a fazia e quem a usava”, relembra Daliana.

Entre as 200 publicações e mais de 8 mil páginas escritas por Cascudo, o Dicionário do Folclore Brasileiro é provavelmente a maior expressão de sua maestria investigativa. O calhamaço contém milhares de verbetes sobre alimentação, religião, animais mitológicos, objetos e crenças do feitio popular.

“Para Cascudo, folclore é uma expressão universal e é a nossa própria realidade que demanda construções nessa expressão. Há sempre um arquétipo: existe aqui o lobisomem, mas também na Europa, e cada país construiu o imaginário de sua forma.”

Encontro com Mário de Andrade

Não é de se espantar que o cuidado de Câmara Cascudo com a cultura brasileira tenha chamado a atenção de pares que também por ela se interessavam. Muitas amizades foram travadas, engrossando o caldo de olhares para a cultura popular. Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiróz, Dina Dreyfus, Lévi-Strauss e tantos outros figuraram entre os que foram aprender com ele.

Sua pesquisa foi especialmente sensível para o escritor Mário de Andrade. O “turista aprendiz” travou intensa amizade e correspondência com Cascudo, indo até o Nordeste após ler um texto sobre lobisomens. Cascudo compartilhou com Mário saberes que influenciaram diretamente a criação da obra “Macunaíma” (1928).

O legado dos escritos e pesquisas de ambos é, para Marcos, mostrar que não se deve piscar os olhos: a cultura está em todos lugares, brota na diversidade e precisa ser estudada acadêmica mas também afetuosamente.

“Eu não tenho dúvidas de que se hoje eles estivessem vivos estariam olhando para os slams, para a cultura viva, a postura engajada, para o contraponto a uma realidade homogênea e que impede a criação. Estariam lá, e veriam e poderiam pensar o Brasil.” (Fonte: Cecília Garcia - portal.aprendiz.uol.com.br/)

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