E por que não tapar os buracos da sola daquele sapato que nos calça os pés tão bem?

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Ontem, conversando com mamãe e uma amiga dela, ambas longevas, falamos que o ano começa depois do carnaval. Olhei para as duas, que tinham mais de oitenta anos, minha mãe, 91, e vi que ambas estavam empertigadas, olhando para os dias futuros com altivez. O momento ficou na minha cabeça, sendo embalado pela melodia de Ivan Lins, “Começar de Novo”. Com uma letra forte e poética, a música fez grande sucesso quando foi lançada em 1979 pelo grito de enfrentamento ante as situações difíceis da vida conjugal que desencadeiam a separação. 

Hoje, mais de 40 anos depois, vejo que a primeira estrofe pode ser aplicada a qualquer situação. Ora pois, os caminhos que trilhamos ao longo dos anos não são desafiadores? Às vezes até chegamos a suspirar ao pensar o que temos pela frente. Como Carlos Drummond de Andrade sabia disso quando escreveu o verso “No meio do caminho tinha uma pedra”, primeira estrofe do poema “No Meio do Caminho”. 

Em “Começar de Novo” os versos iniciais nos acionam a recomeçar a viver dando as mãos e abrindo os braços para nós mesmo. Mostra-nos que vale a pena poder continuar a providenciar os meios para pagar as contas, cuidar da casa, da família e dos amigos, enfrentar os problemas de saúde. Dos animais de estimação. E por que não tapar os buracos da sola daquele sapato que nos calça os pés tão bem? É apaziguador reconhecermos a força que temos para resolver problemas, realizar novos sonhos e mudar o rumo das coisas.

O Dr. Jadyr de Araújo Goes, médico psiquiatra, amigo do meu padrasto, também médico, sempre que conversávamos, o que acontecia com frequência, me dizia que o corpo e a mente precisam de movimento, que todas as células são pulsantes e nos alicerçam. Ainda enfatizava que cada dia deve ser encarado como o mais importante de todos porque a vida é única e finda.  O tempo não nos cede um segundo sequer; é rigorosamente inflexível, dentro do qual envelhecemos, mesmo que nossas mentes mantenham a esperança da juventude.

 Acordamos para um dia novo e diferente, nada se repete, mesmo na mais enfadonha rotina. No caminho da casa da mamãe para minha casa, olhando para as ruas, os carros, os pedestres, os cachorros, repentinamente, parei e me perguntei: “Por que olho para fora e não para dentro da minha pessoa?” Aí uma senti fome imensa de mim, uma vontade de eu mesma me degustar para sentir o gosto que tenho neste momento de existência, quando estou perto dos setenta anos. Cheguei em casa e fiquei só, em total estado de privacidade. Sem me sentir isolada e reclusa, deixei a vontade de estar comigo ter dominância sobre aquele momento.

“Começar de novo e estar comigo. Vai valer a pena ter amanhecido”.

Publicidade
TAGS:

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.