As quatro válvulas do coração

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 04 de fevereiro de 2023

Por que o tempo passa tão ligeiro quando a felicidade nos visita? Mesmo fazendo morada, a estadia da felicidade sempre parece menor do que deveria ser. Não porque somos um tanto insaciáveis. Vorazes? Não somos tão famintos como o tempo, que nos devora, e, sempre se atreve a abreviar esses momentos em que fabricamos saudades. 

Se pensarmos que estamos fabricando saudades nesses instantes, perdemos a felicidade que nos contagia. Melhor viver intensamente e pensar nisso depois. Pensando, revivemos, mas sem a mesma mágica.

Tudo tão efêmero e instagramável. Ou seria instagramável e por isso efêmero? Coleção de fotos posadas e repletas de filtros. Para quem? Tantas paisagens se desfazendo em pixels e pelos mesmos pixels se fazendo em fantasia. Como se precisassem de mais cor em cima da arte divina que já são. 

O mundo cada vez mais veloz. E nós? Tentando se acostumar a essa trama toda de que aposta mais em casualidades do que em uma vida inteira. Será pequena ou grandiosa? Quanto tempo tem cada um de nós? Como toda aposta, perder é provável e ganhar é para poucos. 

Mais interessante é não sentir inveja de quem vence, afinal é sorte. O único mérito de quem ganha é a coragem em apostar. O maior mérito de quem respira é acreditar que a vida é boa, mesmo quando os dias são ruins. A vida se costura assim e nunca se saberá se toda linha que temos terá mais pano para se entremear. Pode se estender, como pode findar ali, antes da agulha que conduzimos entrar em novo tempo. 

A intensidade sempre nos dá muito e nos leva a lugares interessantes. O coser dos dias, no entanto, ensina que sonhos de menino devem ficar adultos o suficiente para saber o quanto e até quando pode se entregar. Faça com o coração moleque, mas não se deixe tapear pela falta de razão. 

Se a vida nos pede coragem, às vezes, é preciso também a audácia de abandonar sonhos que não têm mais razão de realidade. O pior veneno é aquele que fabricamos com nossas angústias e desejos obsessivos. Porque ele corrói, pouco a pouco, e ainda que grite para que paremos de se alimentar dele, a surdez da ambição nos impede de ouvir.

Calma. Observe. Se observe. Respire. Volte. Siga. Há mais caminhos do que imaginamos existir. Assim como as estações, nosso coração tem quatro válvulas. Nosso peito, no entanto, tem infinitas possibilidades. 

Sentimentos mudam, porque somos seres em construção. Nos reciclamos, nos reinventamos e inventamos velhas coisas sobre as novas, ao ponto que seguimos nos reconstruindo até a morte e, quiçá, após ela.     

Entre o bem e o mal, entre o céu e o inferno, há muitos lugares, ao ponto que pecado e virtude estão mais para uma invenção antiga de regulação com mero caráter punitivo. Não se puna tanto. E digo isso também para mim mesmo. 

Se coração vazio pesa, cicatrizes podem deixar o coração mais leve. É preciso aprender com o que a vida nos ensina. Se o tempo apressa a felicidade — seguremos o tempo. Se a natureza divide o tempo em quatro estações — aproveitemos cada uma delas na esperança de revivê-las de modos diferentes quando retornarem. Se o coração tem quatro válvulas — percebamos que, se quatro caminhos não são o suficiente, há tantos outros mais para a felicidade.

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