Uma mesa para dois

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Nestes tempos pandêmicos de recolhimento, tenho tido a oportunidade de
mergulhar mais profundamente na literatura, como leitora, pesquisadora e
escritora. Tem-me sido um tempo de aprimoramento. Quando a vida da cidade
começou a retomar suas atividades, fui jantar num restaurante. Até comovida
pelo retorno à vida social, fiz questão de ficar apreciando o lugar. Embora já
conhecido, parecia que era a primeira vez que estava ali, tudo me era
novidade. Eu estava debutando.
Próximo à minha mesa, havia duas ocupadas por casais. Observando
com discrição para não ter um olho literário inconveniente, notei que eles
estavam vivendo situações diferentes. Em uma mesa reinava o silêncio, os dois
pouco se olhavam e estavam voltados para a comida. A outra estava coberta
de gestos alegres e vozes animadas. Geralmente, são ambientes propícios
para acolher ocasiões especiais na vida de casais, seja um primeiro encontro,
uma comemoração, depois de um momento íntimo. É um lugar de conversa,
troca de ideias e lazer. Também de ajustes, desacertos e finalizações.
Suas paredes guardam recordações surpreendentes. Se fossem
registradas haveria uma coleção de livros com histórias inéditas. Se
observarmos bem, tudo o que ali acontece é uma sucessão de metáforas. A
vida é intencional. Nada é feito ao acaso. Freud, que já bem estudou os atos
falhos, descreveu com maestria a ação proposital inconsciente. A mente
humana não descansa, capta incansavelmente os desejos que brotam, que vão
e voltam do inconsciente ao consciente. Ficam em evidência nos sonhos,
depois, se escondem nos meandros da mente, mas estão sempre prontos a
surgir com novas roupas e fantasias. Nosso pensamento é uma alegoria
criativa e sincera. Geralmente não queremos expô-los, entretanto os
comportamentos, as atitudes e, principalmente, estes atos são traidores;
ninguém gosta de se revelar. A grande maioria dos quais é inconsciente.
Enquanto aguardava o prato, comecei a refletir sobre esta questão e
constatei que tudo o que acontece numa mesa para dois tem sentido. A
começar pelo modo como a pessoa se prepara para ir ao restaurante. Há sempre opções variadas, desde o pentear do cabelo, a escolha dos sapatos e
da roupa. E o perfume? Ao bom observador, os detalhes podem ser
considerados como metáforas. Inclusive os trejeitos faciais e corporais. Até a
maneira de andar revela um propósito.
De fato, é um lugar fértil ao escritor. Se ele pretende buscar ideias para
um romance no estilo tragédia ou comédia, não precisa dar voltas na cidade.
Basta ir a um restaurante, de preferência frequentado por um público
compatível com o tema que se quer abordar, ficar algum tempo saboreando um
bom vinho ou uma cerveja gelada e deixar a vida acontecer. Ah, a vida é o
melhor palco a uma plateia exigente; o acontecer espontâneo naturalmente vai
revelando as miscelâneas das relações, os embates e tristezas, as aberrações
e os encontros inesquecíveis.
A minha primeira saída me foi um aprendizado quando percebi estar num
laboratório de inspiração.

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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