A simplicidade das maritacas e a poesia

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 08 de junho de 2020

Nestes tempos de pandemia, o pensamento reage como forma de apreender este momento tão estranho e absurdo. A filosofia, então, espalhada pelos tetos e paredes da casa, revela o espanto que nós, sujeitos tão bem capacitados e informados, temos fragilidade ante um vírus, um micro-organismo, que nos ameaça abater com tamanha eficiência e rapidez. Enquanto indefesos reféns, precisamos aceitar que estamos numa terrível guerra, mais ameaçadora das que se utilizam de bombas para atacar um inimigo visível e conhecido. O Covid 19 é um invisível desconhecido. Estamos em plena batalha biológica que pegou o mundo com surpresa, tão diabólica que ainda mal sabemos como nos defender. Num redemoinho de preocupações, informações e questionamentos, sem conseguirmos compreender o significado dos acontecimentos, inéditos em nossas vidas, buscamos na filosofia, na história, na biologia e em ciências afins um conhecimento que amenize a angústia ante o incógnito. 

Eu, particularmente, cheguei a ler a respeito do sistema solar, da Via Láctea e da amplitude do universo para me deparar com outra questão mais complexa ainda. Quem somos nós? Afinal de contas, fazemos parte de um universo misterioso e chegamos a ser ainda bem menores do que o Covid 19, este ser microscópico que tanto nos atormenta! Ah, é uma questão transcendental à realidade factual, que precisamos nos debruçar sobre a metafísica. 

Aí, sorrateiramente, surge-me a poesia, que descreve empiricamente o que somos, como vivemos e o que podemos fazer dos nossos dias. Estava caminhando pelo meio da mata, mergulhada na natureza e conversando com pensamentos controversos, tentando entender um emaranhado de circunstâncias e informações, repentinamente, uma revoada de   maritacas passou sobre mim, indo de um lado a outro, piando, fazendo estardalhaço entre as copas das árvores, brincando com a vida. Parei e observei aquele modo simples e espontâneo de ser feliz. Um esbanjamento! Ah, como a alegria pode estar tão perto de nós, como as aves estavam de mim. As aves são seres ameaçados por doenças, incêndios na mata, predadores, ventanias, tempestades. São criaturas muito mais desabrigadas do que nós! 

Repentinamente, eu me senti carregada pelo poema Instantes, de autoria incerta, frequentemente atribuída ao escritor argentino Jorge Luiz Borges:

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,

na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.

Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade

Bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiênico, correria mais riscos, viajaria mais,

contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas,

nadaria em mais rios.

Iria em mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos letilha,

teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveram sensata e produtivamente

cada minuto da sua vida; claro que tive momentos de alegria.

Mas se pudesse voltar a viver, começara a andar descalço no começo da primavera e

continuaria assim até o fim de outono.

Daria mais voltas na minha rua,

contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,

se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas, como sabem, tenho 85 anos

e sei que estou morrendo.  

Quando voltei para casa e escutei o noticiário da televisão tomado por estatísticas e notícias atualizadas do vírus, perguntei-me de que vale ter o conhecimento de tantas questões, se a vida nos afasta do que é mais simples. Certamente, naquele momento, as maritacas me foram mais esclarecedoras do que qualquer explicação científica. Quando retornarmos à vida, pelo menos eu, vou valorizar ao momento de saborear uma tangerina, tanto quanto visitar a Torre Eiffel.

 

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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