A repetição das cigarras

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Participei de uma oficina literária por mais de dez anos, que estava direcionada à criação de textos. A vida fez com que cada um seguisse seu caminho, e nós nos afastamos com tristeza.  Mantivemos contato porque construímos uma relação de afeto. Nós nos gostamos e muito, principalmente do professor Márcio Paschoal, que nunca deixou de olhar por nós, como amigo e conselheiro.  Ah, a literatura une as pessoas, dizia uma amiga, também estudiosa das letras. 

Como esta pandemia nos aquietou em casa, resolvemos nos reunir novamente, entretanto virtualmente. Que delícia! Voltamos a trocar nossas produções literárias, como fazíamos semanalmente. Decidimos, então, que, para o próximo encontro, iríamos criar textos sobre a compulsão.

Considerei o tema tão pertinente e contundente que resolvi trazê-lo aqui. Mas, antes de abordá-lo, devo dizer que as oficinas, das quais participei, contribuíram para que eu escrevesse com clareza, leveza e sutileza. Encontrei em todos os nossos encontros excelente aprendizado.

Então, me pus a pesquisar e a refletir sobre este momento de pandemia. Considerei que as mudanças que sofremos nesta época concorre para que desenvolvamos compulsões. O isolamento da convivência social e familiar, o medo que, em muitas circunstâncias, pode gerar o pânico individual e coletivo, estimulam para que o uso repetitivo de recursos se torne uma presença constante na maneira de pensar e de agir, como passar o álcool no cartão de crédito e no celular. Em tudo o que colocamos as mãos. O que era rotineiro se tornou exacerbado. 

Quem não acorda de manhã querendo saber das notícias de um vírus que teve o poder de parar o mundo, o país e a nossa vida? Com a ansiedade impulsionada pelo risco de adoecer e de morrer, não é possível perder uma informação. Muda-se, assim, de canal, percorre-se as mensagens, lê-se jornais e outras fontes virtuais. A informação fica misturada com o café da manhã e a vida doméstica. Somos levados, como um barco em busca de rumo, pelos meandros da pandemia, pelas incertezas das decisões, pelo desconhecimento das possibilidades futuras. A vida mergulha na imperfeição. A normalidade cai por terra, e o improvável se torna experiência frequente. Como a insegurança aprofunda os hábitos perfeccionistas, as gavetas e prateleiras ficam impecavelmente arrumadas. O que era costumeiro, agora, é um compromisso inadiável.    

Se éramos desavisados e tocávamos nos objetos na rua ou segurávamos em corrimões, agora não podemos encostar em nada. E as pessoas por quem temos afeto? Ah, não podemos mais delas nos aproximar. De uma hora a outra, ficamos frágeis e vulneráveis. O fato é que o álcool, a distância e as luvas se tornaram um amparo necessário. Vital. 

Ao se ter a impressão de que podemos ser infectados a qualquer momento, colocamos o termômetro para medir a temperatura, bem como testamos o olfato e o paladar. Desta forma, fizemos um ciclo de repetições, como a cigarra que repete seu canto. Recanta. Em todos os verões. 

Certamente, depois que a pandemia passar, poderemos ir além das paredes do isolamento. Mas será que vamos continuar girando pelas repetições? 

Espero que as tornozeleiras das compulsões não sejam difíceis de retirar. Como o canto das cigarras que silenciam depois do verão.     

 

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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