As formigas e as flores do manjericão

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Noutro dia, de manhã, com resto de sono guardado no corpo, fui jogar o lixo na lixeira, que fica ao lado do canteiro onde estão plantados pés de manjericão. Ao me abaixar vi uma fileira de formigas carregando pequeninas flores brancas caídas no chão, algumas quase do tamanho dos insetos que as transportavam incansavelmente. Como estava relaxada e com a hora sem estar contada, fiquei as observando com admiração, pensando no trabalhador braçal, na minha família composta por pessoas que dedicaram anos e anos ao trabalho; minha avó foi enfermeira de posto de saúde e minha mãe bibliotecária. Também pensei no meu trabalho, agora voluntário, na Academia Friburguense de Letras. E lá continuavam as formigas, numa marcha infinita e em pacífico silêncio, sob o sol que começava a esquentar. Resilientes e firmes, cumpriam suas obrigações.

Incrivelmente, à noite, uma cigarra adentrou minha sala. Agitada e só, ia se debatendo pelas paredes e cúpulas de abajur, fazendo barulheira. Cada vez mais desesperada, o inseto cantava alto. Fiquei agoniada tentando salvá-la, mas ela voava e cigarreava. Fechei as luzes e abri as janelas. Não a vi sair. No dia seguinte de manhã, fiz uma busca minuciosa pela casa e não a encontrei. “Ufa, ela deve ter reencontrado a liberdade”, suspirei aliviada. 

Fui caminhando dia afora refletindo sobre a fábula de Esopo, “A cigarra e a formiga”, adaptada para o francês por La Fontaine, as formigas carregando alimento em procissão divina e a cigarra atordoada fora do seu habitat e enfrentando paredes. Cheguei à conclusão que o mundo precisa de cigarras e formigas. As formigas são trabalhadoras, organizadas e trazem grandes benefícios para a natureza. As cigarras fazem parte da cadeia alimentar e são consideradas pragas para algumas culturas. Ah, as diferenças individuais e os valores presentes em cada pessoa... quem é semelhante a alguém?

Esopo foi genial ao contar que a cigarra foi acolhida pelas formigas para diverti-las através da dança ou cantoria. Imaginem se as formigas não abrissem a porta para a cigarra entrar e cantar durante o inverno, tempo em que elas deveriam ficar reclusas?

Nem lá com as formigas, nem cá com as cigarras. Não estamos inseridos num universo multifacetado de realidades distintas? O importante é que façamos a vida acontecer com criatividade. 

E o manjericão?

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Tereza Cristina Malcher Campitelli

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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