Beijo de cetim

Tereza Malcher

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Hoje darei um tom psicanalítico a esta coluna por causa de um amigo de oficina literária, Pablito, que teve o carinho de me enviar um vídeo sobre o texto “O Poeta e o Fantasiar”, escrito por Freud, em 1908.

O mestre da Psicanálise revela que o homem, por ser beneficiado pelas capacidades criativa e inventiva, sente-se encantado com o fantasiar, como forma de externar ou materializar seus desejos. A criação poética é, portanto, resultado desse potencial, e é possível relacioná-lo à brincadeira infantil, sempre construída por fantasias. Todos nós, humanos, somos poetas por essência, porém os que se tornam poetas de fato são aqueles que não perdem na vida adulta o hábito de elaborar realidades psíquicas tais quais faziam quando crianças, quando lidavam com os momentos lúdicos com veracidade, atribuindo importância relevante ao que faziam. Da mesma forma que o escritor quando cria narrativas literárias, seja em prosa ou poesia. Inclusive, um dos princípios básicos da ficção é a verossimilhança, ou seja, os universos ficcionais imaginados pelo autor precisam ser semelhantes à vida para dar ao leitor a impressão de concretude. 

Só se torna poeta aquele que não renuncia ao “faz de conta” infantil, que, na vida adulta, é substituído pelo fantasiar, através do sonhar diurno e noturno. Ah, no poema “Cancioneiro”, Fernando Pessoa tão bem reflete sobre o fazer poético, dando completa razão a Freud.

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só as que eles não têm.

Mas assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Freud considera que tanto a brincadeira, como o poetar são atos psíquicos íntimos, atividades pessoais únicas. O fazer literário é uma forma do adulto não deixar que seus desejos fiquem ou continuem reprimidos, materializando-os através de palavras trabalhadas e cuidadas, que externam seus anseios, suas insatisfações. Poderia, neste mundo, não existir a arte? Uma atividade humana que acolhe a falta, a ausência, o medo. O enlevo.

Somos seres incompletos e desejantes, sempre em busca de prazer. O fazer poético se faz necessário para que não adoeçamos ou enlouqueçamos com os tantos desejos que guardamos, muitas vezes, desde os mais tenros momentos de vida. É um fazer que os atualiza sempre, tornando-os presentes em cada poesia e guardando-os para o futuro nos livros e arquivos. Eternizando-os.

Ao lidar com seus desejos, o escritor acaba nos presenteando com palavras, ideias, histórias. Sua dor sempre se transforma em beijos, que podem ter a maciez do cetim e a fúria dos mares. Até o gosto salgado de lágrimas infinitas.

 

 

 

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis, presidente da Academia Friburguense de Letras e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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