Beethoven, o mestre das superações

Tereza Cristina Malcher Campitelli

Momentos Literários

Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

terça-feira, 06 de agosto de 2024

        A literatura mergulha na vida, e a vida abraça a literatura. É como se houvesse um bom intercâmbio entre uma instância abstrata que reflete a vida como um espelho e a realidade concreta da existência, enquanto palco de encenações e inspirações para um escritor atento e um vivente maduro.

        “A pequena coreografia do adeus” (*), de Aline Bei, obra literária publicada pela Companhia das Letras, me tocou lá naquele fundo da gente que é macio e se modifica quando recebe um toque. Somos feitos de partes duras e moles que vão se entremeando de acordo com o que se vive. Nas partes duras estão os verdadeiros guerreiros, dotados de forças e espadas, que enfrentam guerras e batalhas. Enquanto as outras partes vão amolecendo, quase virando líquido, quando entram em contato com sensíveis afetos.

        Júlia, a personagem, recebe de sua mãe os piores maus-tratos desde os mais novos anos. E de seu pai, uma indiferença comprida que se estica pelos dias afora da sua infância. A autora realça na escrita, quer seja nas palavras, quer na formatação do texto, as emoções de Júlia. Vamos lendo com frases encurtadas e cortadas, letras em estilos e tamanhos diferentes, páginas escritas ou em branco. Os parágrafos são longos e ou curtos, feitos de uma só frase ou palavra. Ela escreve com divina criatividade de modo que o leitor se emociona junto com a autora, numa cadência literária definida e inteligente.

        A história acontece assim, encostando nas partes duras e moles de Júlia, que vai se acostumando a superar as tragédias diárias. E, aí, a cada página, corro para a janela da vida e começo a ver, como Aline Bei, as durezas com que as pessoas se deparam no dia a dia. O que me faz concluir que existe no fundo dos nossos poços o amor por nós que nos faz cantarolar a “Ave-Maria” de Schubert, tal qual eu fazia encostada no ombro do meu avô, às 18 horas, e escutar as poesias de Vinícius de Moraes através das suas músicas. É aconselhável cantar e recitar sempre que precisamos superar circunstâncias que nos machucam.

        Certa vez, assisti à palestra da médica e budista, Nazareth Solino, que publicou a crônica “O rabo da lagartixa” em 2006, contida no livro do mesmo título. Ela, com bom humor, fez uma exposição sobre o rabo do réptil e afirmou, com ênfase: quando decepado, cresce novamente com vigor. A seguir, ela completou que a maior luta que todos nós travamos é ao acordar: abrir os olhos, levantar da cama e jogar água no rosto para despertar com disposição.

        Pouco tempo depois, soube que Nazareth estava lutando com bravura contra um câncer, vindo a falecer. Naquela palestra ela estava altiva, animada e disposta a viver plenamente. E viveu até seus últimos dias, conforme uma amiga me disse.

A gente tem que aprender a superar as tantas perdas, mágoas, decepções e fracassos que experimentamos. A vida é assim. Não desfilamos em passarelas com beleza e juventude reluzente como pretendia Dorian Gray. Temos, posto que sim, a honra de estarmos vivos, trilhando trajetórias existenciais e tendo a ciência de que nascer é o maior presente que a natureza pode nos dar. Penso assim e com certeza crescente. Não perdemos mais de cem fios de cabelos todos os dias? Nós nos despedimos das pessoas que amamos, vivemos conflitos com quem convivemos, experimentamos necessidades não satisfeitas, desejamos e lutamos bravamente para realizar nossos propósitos, alguns deles não conquistados. Não esquecemos as chaves em casa?! Ou não perdemos cartões e documentos?!

        A verdade é que temos de aprender a surfar as ondas de nossas praias, principalmente quando o tempo das ressacas chega todos os anos com ondas imensas. Mas a praia, sempre bela, continua a receber o calor do sol e o brilho do luar.

        Se a vida nos maltrata e tira um filho dos nossos braços, como fez comigo, a gente tem que saber que vamos ter que acordar no dia seguinte porque outro filho vai nos chamar. Aí cantarolamos, versejamos o amor ao invés de bater no peito e bravejar. Ah, meu amigo, a inteligência emocional nos está disponível e pronta para ser usada.

        Beethoven pode nos ser um grande mestre!

        (*) Finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura de 2022.

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Tereza Malcher é mestre em educação pela PUC-Rio, escritora de livros infantojuvenis e ganhadora, em 2014, do Prêmio OFF Flip de Literatura.

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