Tilt

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 29 de janeiro de 2022

“A gente tem muita paciência para erros da tecnologia, mas não temos a mesma paciência com o outro, com as pessoas”. À frase, que o sociólogo Dominique Wolton disse à minha turma de pós-graduação em Gestão Pública, acrescento que também não somos pacientes nem com a gente mesmo. 

Esse pensamento ecoou ainda mais interessante por conta de uma experiência que tive recentemente e pela qual todo mundo passa. Meu smartphone, do nada, simplesmente parou de funcionar. A tela preta, cheia de cores esquisitas pulando — tilt. 

Tilt é um termo que ouço desde criança quando o cartucho do videogame não funcionava. Geralmente, não sei por que motivos, assoprávamos a fita, o tilt passava e lá íamos para a diversão. Tilt, nesse caso, é uma gíria para exemplificar algo que parou de funcionar. Também é usada para pessoas: ficou maluca.  

Telefone sem contatos, sem aplicativos do banco, de conversa, de jogos, de editor de fotos e de vídeos. O celular tem mais coisa que a carteira de couro que carrego no bolso. Sem poder falar com ninguém. Ficar sem o aparelho é quase como ficar sem um dos membros.

Uma pesquisa na internet me deu os caminhos: baixar um programa para atualizar o dispositivo. O aviso assustador: “Caso não seja possível atualizar, será necessário restaurar, o que significa que perderá todos os dados não salvos na nuvem”. 

Horas e horas — erro. Mais algumas horas e novo erro que sacramentava: restaurar. Sem alternativas, efetuei o procedimento que deu o erro 4103. Será que vai de 1 a 4103? Haja erro! Nova busca e a pior notícia: assistência técnica. Para a virtual, código de verificação no telefone. Oras, como fazer a verificação se o dito cujo está com defeito? 

Horas fora do mundo. Parentes e amigos preocupados com o sumiço. Estar fora da tecnologia te torna invisível. Por isso, a paciência irritante com a tecnologia é mais forte. Dia seguinte, salvo pela assistência. Na verdade, salvo pela experiência de um dos técnicos.

O primeiro não conseguiu resolver, o segundo matou a charada por caso semelhante em que quebrou a cabeça para conseguir salvar aparelho igual. Curto-circuito interno, por uma peça miúda. Peça desconectada, restauração efetuada, uso parcial permitido até que a peça fosse trocada. 

A saga é cotidiana em todos os cantos e se percebe pela quantidade enorme de lojas que consertam todo tipo de eletrônicos. Do mesmo modo, vemos a quantidade crescente de espaços que “curam” pessoas: farmácias, igrejas, consultórios de especialidades variadas, com destaques para psicologia e psiquiatria. Estamos dando tilt. 

Será que temos a mesma paciência com o tilt das pessoas como temos com nossos caros eletrônicos? 

Estamos precisando de preventivos: diversão. Tanto quanto precisamos respeitar os nossos tilts e os tilts dos demais. Talvez necessitemos mais da mesma paciência que temos com as tecnologias para com as pessoas. Porque se as tecnologias, inegavelmente, facilitam nossas vidas e por isso somos dependentes. 

As pessoas, inegavelmente, nos dão brilho aos dias e por isso somos livremente dependentes delas. Mas as tecnologias podem até faltar, chegamos até aqui sem muitas delas. Mas sem as pessoas não chegaríamos e seguimos sem chegar a lugar algum. 

Cuidar mais uns dos outros. Dar aquela assoprada carinhosa de vida como fazíamos no cartucho do videogame. Dar afagos, olhar sereno, abraçar as imperfeições que dão gosto ao cotidiano. 

Fazer do dia a dia – diversão e compartilhar dessa diversão. Afinal, festa vazia não é festa. Vazio é pior do que tilt.    

 

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