Abaixo a síndrome de Cinderela

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 08 de julho de 2023

Tem dias que eu acordo e o máximo que consigo é acordar. E, por que não estaria tudo bem com isso? A gente não tem que estar disposto todos os dias, todos os momentos. Deve ser muito chato ser feliz todos os dias, ou melhor, ter que se mostrar contente a todo instante, como se a vida fosse aquilo que se posta no Instagram. No TikTok, então, tudo se resume a quinze míseros segundos. 

Abaixo a síndrome de Cinderela. Imagina levantar todos os dias sorridente para varrer a casa, lustrar os móveis, lavar o banheiro cantarolando com os bichinhos. Ultrapassado e piegas até para filme da Disney. 

Reverência à preguiça, à impaciência, ao mau humor. O mundo caótico nos permite não ter que estar bem o tempo todo. Até a Bolsa de Valores cai e levanta. Por que nós, meros mortais, temos que ser diferentes do rei mercado? Ou diferentes da lógica da vida?

Monitor cardíaco em linha reta é sinal de morte. Variações de frequência é o que nos fazem vivos. Entre altos e baixos, mais vale um sorriso sincero do que sorriso de político mentiroso. Cara emburrada expulsa a hipocrisia. Não somos constantes. Somos uma espécie instável, que até busca o estável, mas que persegue mesmo é o inenarrável, a experiência, a aventura, os tais impactos que nos energizam, tudo o que nos vibra, reinventados, iluminados, iluminadores. 

Voo pede aterrissagem é só aterrissa quem voa. O que é melhor? Não sei. De tal forma que, para diferenciar alegria de tristeza e todos os antônimos, é natural que antagônicos façam parte da jornada de cada um de nós. 

Ainda que bilhões, somos tão únicos. Deus é mesmo um sujeito criativo. Nós somos criativos. Tantas personalidades distintas, tantos personagens que abrigamos dentro de nós mesmos e convocamos, a bel-prazer ou não, todos os dias. 

Há manhãs frias que não dá a menor vontade de levantar da cama. Que acordar é o suficiente. Que estar à toa é a melhor opção entre todas as outras. E tudo bem. Você não precisa de tarja preta ou de hormônios injetáveis ou da vida que os outros dizem ter nas redes sociais. 

Desafio das seis da manhã, cem dias de provação, banho gelado às quatro da madrugada no inverno… Dispenso os coachs, assim como os pastores que vendem fé disfarçada de prosperidade, prosperidade mascarando sacrifício, e, que se “você não atingiu a graça é porque não se esforçou o suficiente”. Isso não é religião ou psicologia positiva, isso é capitalismo! Talvez até o capitalismo seja mais honesto.         

Eu gosto dos boêmios, loucos, entregues. Porque loucos, entregues, boêmios têm a virtude de não serem hipócritas. Com raríssimas exceções, moralistas moram nos armários. Criticam aquilo que fazem no escuro ou o que gostariam de fazer. Nos seus âmagos, querem (quando não os fazem às escondidas) aquilo que julgam errado. Invejam os livres e a liberdade é para eles um desejo, tanto quanto tormento. Não os condeno, mas ser um deles…

Amem a liberdade. Sejam amigos de suas próprias consciências. É onde mora Deus. Cinderela? Ela canta feliz arrumando a casa, junta as duas mãos e as leva ao rosto encantada, mostra no Instagram seu príncipe encantado. Mas o príncipe também arrota, os sapatos de cristal apertam e os bichos mordem. Não romantizar o cotidiano é um bom começo. Escolha bem o que entra no seu filme, lembrando que no filme da vida não tem cortes ou edição.    

É impossível vencer sempre e viver é transitar entre polos. Admitir a preguiça é tão justo, quanto se pegar sorrindo, do nada, no meio do trabalho árduo ou na caminhada pelo parque. E é assim que a gente se compartilha com o mundo. 

Há dias que acordar é o máximo que se pode fazer, outros, acordar é só o começo para coisas extraordinárias. E, claro, no meio disso tudo sempre tem as surpresas. Agradáveis ou não. Mas é tudo aquilo que foge ao nosso controle, e, imprescindível é saber conviver com isso. Haverá muita felicidade nisso e também tristeza. Isso é viver, isso é se manter vívido.

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